Qual a semelhança entre filmes como "O silêncio dos inocentes", "Procurando Nemo", "O senhor dos anéis" e séries de TV como "Sex and the City" e "Betty, a feia"? Todos tiveram como roteiristas ex-alunos de Robert McKee, um dos mais lendários professores de roteiro da indústria cinematográfica mundial. Pelas suas salas de aula passaram estudantes que acumulam nada menos que 49 estatuetas do Oscar e 170 prêmios Emmy. No Rio de Janeiro esta semana para ministrar um curso promovido pela Globosat, McKee concedeu entrevista para a revista Tela Viva, da Converge Comunicações, mesmo grupo editorial responsável por MOBILE TIME. Segue abaixo uma parte da entrevista, com perguntas relacionadas à influência da tecnologia sobre o processo criativo e à produção de roteiros em geral, o que pode interessar ao público deste noticiário que trabalha com o desenvolvimento de games ou conteúdo audiovisual para celulares. A íntegra da entrevista, na qual McKee analisa a produção cinematográfica brasileira contemporânea e discorre até mesmo sobre a novela Avenida Brasil, será publicada na próxima edição de TELA VIVA.
MOBILE TIME – Oitos anos atrás, quando surgiram os primeiros telefones com tela colorida e câmera, as operadoras começaram a oferecer conteúdo audiovisual para download. Alguns eram criados especialmente para essa mídia, filmados com closes, porque a tela não permitia muitos detalhes, e com roteiros curtos, porque a rede não suportava arquivos grandes. Naquela época, se acreditava que surgiria uma nova indústria audiovisual, ou mesmo uma nova linguagem cinematográfica, voltada para essa nova mídia. Só que com a evolução dos smartphones e dos tablets isso acabou: agora assistimos filmes inteiros nesses dispositivos. Qual a sua opinião sobre a influência de novas tecnologias na maneira como estórias são filmadas?
Robert McKee – Acho positivo o surgimento de novas tecnologias por dois motivos. Primeiro porque hoje, graças à tecnologia, qualquer coisa que um escritor imagine pode ser criada. Não há mais limites para suas fantasias, seus sonhos, seus mundos inventados. E por um preço cada vez mais barato. O que se precisa é de talento, ou seja, de bons artistas gráficos que possam pegar as suas visões e botá-las na tela. Por um lado, tecnologia é fantástica e abre a imaginação. O outro aspecto pelo qual o avanço tecnológico é fascinante é o tempo.
Como assim?
As histórias hoje podem ser mais longas do que nunca foram. No passado, chegou-se a dizer que um romance com 1 mil páginas, como "Ulisses" de James Joyce, seria o maior tamanho possível para tal. Mas agora você pode ter 200 horas de estórias… E a complexidade dos personagens pode ir muito além do que qualquer um imaginado por James Joyce. Isso aumenta a complexidade das relações entre os personagens, dramatizada sobre, literalmente, centenas de horas. As possibilidades criativas para o escritor do século XXI possibilitam criar estórias equivalentes ao que foram as catedrais do passado: enormes e complexos trabalhos de arte. A tecnologia tornou possível sonhar qualquer sonho e por quanto tempo quiser. Se você tiver o talento para fisgar o interesse da audiência e a mantiver atenta por 200 horas, é incrível. Nunca foi feito nada assim na história da humanidade. Nunca tivemos essa oportunidade antes de criar estórias com tal magnitude e extensão.
A indústria de jogos eletrônicos se tornou um novo mercado para roteiristas. E hoje ela é tão grande quanto a indústria cinematográfica…
Ou até maior, se você medir em dólares.
Qual a diferença entre se escrever uma estória para um jogo ou para um filme?
Filmes são arte. Jogos não são. Jogos são jogos. Eles demandam que haja um jogador e por definição isso não pode ser arte. Para fruir uma obra de arte a pessoa precisa estar com a mente descansada, ouvir a música, olhar o quadro, seguir a estória. Você precisa deixar o artista criar dentro de você a arte dele. Se a sua cabeça está ocupada, isso é uma barreira para uma experiência mais aprofundada. Arte requer que o público seja passivo, enquanto jogos requerem que ele seja ativo. No jogo você precisa fazer escolhas, precisa jogar. Claro que pode haver um momento no jogo em que você é sensibilizado de maneira parecida com que seria com uma obra de arte, mas não será profunda e não mudará a sua vida e não necessariamente o enriquecerá como ser humano. Mas afinal de contas jogos não são feitos para isso. Jogos são diversão. Jogos se comportam como estórias e os princípios de uma boa estória se aplicam neles. Eu dei palestras para gente da Sierra Online, Microsoft e outros desenvolvedores de jogos para que utilizassem a estrutura de estórias quando criassem seus games. Mas são jogos, não arte.
Os princípios para se contar uma boa estória são universais ou mudam de acordo com a época e a cultura em que vivemos?
No nível mais profundo é universal. A cultura representa uma parcela ínfima, enquanto a natureza humana tem uma importância muito maior. A natureza humana, debaixo dessa fina camada de cultura, é extremamente profunda. A superfície cultural pode influenciar, sim, dependendo da época e de onde se está. Em sociedades materialistas as pessoas vivem conflitos internos, porque, embora tenham sucesso profissional, suas vidas parecem vazias e desprovidas de sentido. Enquanto isso, no Oriente Médio, as pessoas estão tentando sobreviver. Ou seja, lá o conflito está entre a vida e a morte. Em Paris, talvez seja um conflito existencial. Mas a forma é a mesma: a procura por desejos, encontrar antagonismos, tomar ações que transformam a vida de positiva a negativa ou de negativa a positiva. Os valores e os conflitos mudam, mas a forma é universal. Estórias são metáforas para a vida. E a essência da vida humana não muda há dezenas de milhares de anos.
Tenho muitos amigos escritores e poderia dividi-los em dois grupos de acordo com seus métodos de escrita. Alguns são metódicos e gostam de definir metas, como escrever uma página por dia, o que, aliás, era o método usado pelo José Saramago. E outros preferem ser conduzidos por uma força obscura que chamam de "inspiração". Qual a sua opinião sobre essas duas abordagens antagônicas?
As pessoas que esperam por inspiração nunca criam nada que preste. Isso não é profissional. É uma forma delirante e romântica de pensar. Muitas pessoas que dizem escrever por inspiração estão enganadas quanto ao próprio talento. Mas, presumindo que se tenha talento, é preciso tratá-lo como um músculo. É um poder que você tem no cérebro para pegar as coisas da vida e descobrir conexões que estão escondidas na sua cabeça e colocá-las para fora de uma forma como ninguém fez antes. Quem tem talento nasceu com isso, mas precisa trabalhar. E, por tudo que sei de escritores, as melhores experiências vêm quando eles não estão a fim de escrever. Porque não se tem acesso direto ao seu talento. Essa é a ilusão da inspiração: a de ter acesso direto ao talento quando estiver com vontade, ou relaxado. Isso é non-sense. Talento é um poder subconsciente no seu cérebro e é como um gato que só vem até você quando está a fim. Não é um cachorro. O talento é um gato, que vem quando lhe é conveniente. Acho que uma página por dia é até pouco. Eu trabalharia com mil palavras por dia, o que dá provavelmente quatro páginas. Você pode jogá-las fora no dia seguinte, não tem problema. Porque quando você está concentrado descrevendo personagens ou o que vê fora da janela, mesmo que seus dedos estejam paralisados sobre as teclas, só de estar lá, de repente, do nada, seu talento joga algo na sua cabeça, quando quer, e não sob o seu comando. É preciso disciplina: sentar e escrever. Pode escrever besteira, mas escreva. Faça isso seis ou sete dias por semana, por uma certa quantidade de horas por dia, ou uma certa quantidade de palavras. Mas é importante ter consciência de que 90% do que você produz não é grande coisa. Suas chances de criar algo excepcional são de 10% na melhor das hipóteses. Eu diria que é menos que isso, em torno de 2%. Se formos otimistas e trabalharmos com 10%, para escrever algo que seja 100% excepcional você precisaria escrever dez vezes mais páginas e jogar fora 90% de banalidade, mantendo apenas os 10% excepcionais. As pessoas que acreditam em inspiração pensam que tudo que escrevem é bom.
Antes de começar a escrever uma estória é necessário saber o seu final?
Não. Basicamente acho que os grandes escritores são pessoas curiosas. Alguma coisa aflora neles a curiosidade de "o que aconteceria se…". E aí começam a explorar esse mundo e sesses personagens, e encontram desejos neles, e descobrem desejos superficiais que são máscaras param desejos mais profundos, e resolvem ver até onde isso vai, até encontrarem um final. Mas pode acontecer de a primeira coisa que lhe vem à cabeça é o final. Neste caso, você tem quer ir para trás, não tem problema, desde que você esteja aberto a eventualmente mudar o final. De estória para estória você nunca sabe se começará pelo começo, pelo meio, pelo final ou por alguma parte que mais tarde você nem usará. O processo é sempre um mistério.
Tenho a sensação de que uma vez terminado um texto é bom deixá-lo descansar e relê-lo semanas ou meses mais tarde, para ter certeza de que ainda o acha bom. O senhor concorda?
Sim. Às vezes você lê mais tarde e se dá conta de que gastou meses com uma porcaria! O processo criativo leva tempo. Tenho a teoria de que para as pessoas talentosas a estória já está escrita. Seu problema é tirá-la de dentro de si da forma certa. Trazer isso para a superfície pode levar muito tempo.
Poderia nomear os seus escritores contemporâneos favoritos?
Não. Tenho muitos escritores que foram meus estudantes. Se eu citar alguém os outros ficam sabendo… Eu amo arte. E sou agradecido de haver grandes escritores nesse mundo que enriqueceram a minha vida.