O sexto sentido existe, mas não faz parte do corpo humano. Na verdade, nós vamos vesti-lo, na forma de acessórios inteligentes conectados. Essa é a expectativa de especialistas em tecnologia, como o CEO da Qualcomm, Paul Jacobs, que adota o termo “sexto sentido digital”. São relógios, pulseiras, óculos e, no futuro, roupas inteiras, que sentem por nós, conectam-se à Internet pela rede celular e se comunicam com os smartphones em nossos bolsos. Formam uma nova categoria de produtos, que em inglês estão sendo chamados de “wearable devices”, ou acessórios de vestir, em uma tradução literal. No embalo dessa novidade, surgirá um novo mercado para desenvolvedores móveis com a criação de aplicativos para esses acessórios, com a disponibilização de kits de desenvolvimento de softwares (SDKs) pelos fabricantes. E um desafio novo para empresas operadoras de rede, com uma expansão considerável na intensidade do tráfego e no número de conexões simultâneas.

Depois da moda dos smartphones e dos tablets, os wearable devices representariam um novo ciclo na indústria de eletrônicos de consumo de massa, na opinião de alguns especialistas ouvidos por este noticiário. Um deles, o CEO da Flurry, Simon Khalaf, entende que esses ciclos de consumo estão ficando cada vez mais curtos: “O primeiro acessório de vestir foi o Sony Walkman, que botou a música colada ao corpo humano. Levamos 15 anos para migrar para o iPod. Depois, sete anos do iPod para o iPhone. E então, dois anos e meio para o tablet.” Ele aposta que dentro de 18 meses os wearable devices serão um produto de consumo de massa. A Juniper Research compartilha dessa visão e prevê que ao longo dos próximos cinco anos a receita mundial anual gerada por esses acessórios e os serviços a eles atrelados vai subir de US$ 1,4 bilhão para US$ 19 bilhões.

As pioneiras a desbravar esse mercado foram as pulseiras esportivas. Conectadas via Bluetooth com o smartphone do seu dono, elas monitoram silenciosamente durante o dia inteiro a sua atividade física, contando seus passos e calculando as calorias queimadas. Algumas se propõem a analisar a qualidade do sono a partir dos movimentos da pessoa enquanto dorme. Os dados coletados se transformam em relatórios gráficos exibidos em aplicativos dentro do smartphone, para verificação a qualquer momento pelo usuário. Além de empresas novas, como Fitbit, JawBone e Misfit, esse mercado atraiu também marcas de expressão mundial, como a Nike, com a sua pulseira Fuelband.

Talvez o maior desafio dos novos acessórios conectados seja mesclar na medida certa tecnologia e moda. Por serem produtos para serem vestidos, eles precisam ser bonitos e atraentes, não basta serem úteis. Isso fica claro nas pulseiras, oferecidas em cores variadas e formas arrojadas. Depois das pulseiras, a próxima categoria em foco é a de relógios conectados, ou inteligentes (smart watches). O potencial desse produto ficou nítido diante do sucesso do projeto Pebble no site de financiamento colaborativo para start-ups Kickstarter: em apenas cinco semanas, entre abril e maio de 2012, seus criadores conseguiram levantar US$ 10,27 milhões de precisamente 69.929 consumidores ávidos por terem um relógio conectado. Detalhe: o valor arrecadado foi cem vezes maior que a meta original, que era de US$ 100 mil.

O sucesso do Pebble abriu os olhos das fabricantes tradicionais de smartphones. A Samsung lançou seu primeiro relógio
conectado, o Gear, este ano. A Sony, por sua vez, apresentou a segunda versão do seu smart watch. E até a Qualcomm, que desenvolve chipsets, resolveu criar o seu, batizado de Toq, como forma de começar a desbravar essa nova fronteira. Neste caso, o objetivo é chamar a atenção de outros fabricantes para o segmento e oferecer um design de referência, em troca da venda de processadores para os produtos. há ainda os rumores de que a Apple lançará algo como um “iWatch” em algum momento.

De maneira geral, os relógios conectados funcionam como centrais de notificação para o smartphone de seus donos. Na tela do relógio, além de ver as horas, o consumidor pode acompanhar a chegada de mensagens de texto, ler e-mails, ver as chamadas recebidas ou trocar de música. A principal vantagem é não precisar tirar o smartphone do bolso tantas vezes ao dia. O Gear, da Samsung, porém, traz um elemento a mais: tem uma câmera embutida na pulseira, o que permite tirar fotos e gravar vídeos. Os arquivos são armazenados no smartphone e, a partir daí, podem ser enviados para a nuvem.

Óculos conectados

Em um estágio de maturidade anterior estão os óculos conectados. Seu expoente mais conhecido é o Google Glass, que ainda se encontra em fase de testes, antes do lançamento comercial. No lugar da lente, há uma pequena tela que exibe imagens por cima daquelas do mundo real. Os óculos respondem a comandos de voz, mas tem também botões em uma das hastes. há ainda uma câmera frontal para que se possa filmar aquilo que se vê. Cerca de oito mil pessoas ao redor do mundo receberam a novidade para testar, incluindo alguns brasileiros, como Breno Masi, diretor de produtos da Movile. “Demorei três dias para me acostumar, embora o Google dissesse que levaria meia hora. As imagens ficam um pouco acima do seu olho. Tem que dar uma olhadela para cima. Não dá dor de cabeça, mas acho que estou ficando meio estrábico”, relata, em tom de brincadeira. O Google fechou parceria com uma ótica nos EUA para encomendar modelos com lentes de grau.

Ao contrário das pulseiras e dos relógios, os óculos oferecem mais possibilidades de aplicações, especialmente envolvendo tecnologia de reconhecimento de imagem e realidade aumentada. Durante as compras em um supermercado, por exemplo, os óculos poderiam comparar os preços de um produto que o usuário está vendo a partir do reconhecimento automático da embalagem ou da leitura do código de barras. A navegação em ambientes abertos ou fechados também pode ficar mais prática dentro dos óculos, especialmente no caso de pedestres, que não precisarão mais ficar olhando para baixo para acompanhar um mapa na tela do smartphone.

Há grande expectativa em torno de aplicações para suporte técnico remoto, a partir das imagens transmitidas pela câmera. Quem compra um móvel para montar em casa poderia ser assessorado à distância por um técnico em um call center que estaria vendo na tela do computador exatamente o que vê o consumidor, através dos óculos. Isso pode servir também para o suporte técnico a produtos eletrônicos, como laptops e smartphones. O potencial para propósitos educacionais e de saúde é enorme. E há quem espere que os óculos sejam adotados por policiais e soldados, tanto para recebimento de informações quanto para a geração de imagens, substituindo as câmeras acopladas em capacetes.

A publicidade não vai ficar de fora. há quem preveja outdoors personalizados. Dependendo de quem olha com seus óculos conectados, é exibido um anúncio diferente. Quem estiver sem óculos verá um anúncio estanque ou simplesmente uma parede em branco. O passeio pelos corredores de um supermercado com os óculos também poderá gerar anúncios de promoções que apenas o usuário verá.

Apesar de tantas aplicações promissoras, a popularização desse produto enfrentará resistência. Quem não precisa de óculos hoje provavelmente achará desconfortável adotar um. Fora isso, a sobreposição das imagens provoca certo estranhamento de início. “O Google Glass gera muita distração. As pessoas reparavam em mim quando eu estava com ele. Não sei dizer se estavam olhando para mim por causa do Google Glass ou porque eu estava me movimentando de maneira estranha, pois seu corpo reage diferente”, relata o CEO da Flurry, outro que testou o produto. “O cérebro não está treinado para ter a visão obstruída. É como se tivesse uma mosca na sua frente: a primeira coisa que você faz é tentar removê-la. Os óculos terão mais dificuldade de se popularizar (que os relógios ou as pulseiras)”, complementa Masi, da Movile.

Aplicativos

Os acessórios de vestir orbitam em torno do smartphone. Este funciona como um hub, servindo de ponte para a Internet e trocando conteúdo via Bluetooth com os wearable devices. O smartphone também é usado para o armazenamento e o processamento dos apps dos acessórios. Desta maneira, a maioria dos aplicativos criados para pulseiras, relógios e óculos é desenvolvida para o sistema operacional dos smartphones, onde ficam instalados.

Tal como aconteceu com os tablets, que ganharam apps desenvolvidos especialmente para suas telas maiores, é esperado que surjam cada vez mais aplicativos desenhados para os diferentes acessórios conectados. “Definitivamente, os wearable devices vão introduzir uma nova dimensão para os desenvolvedores pensarem”, prevê Khalaf, da Flurry. Todavia, isso não acontecerá da noite para o dia. Em um primeiro estágio, a tendência é que a maioria dos fabricantes de acessórios prefira desenvolver sozinhos os aplicativos oficiais que se comunicam com seus produtos.

Aos poucos, começam a aparecer iniciativas de abertura de ecossistemas, por meio de interfaces de programação de aplicações (APIs) e de SDKs para que terceiros criem apps para tais acessórios. Google e Nike já iniciaram essa abertura para seus óculos e sua pulseira, respectivamente. Merece destaque o exemplo do relógio Pebble, que desde seu nascimento abriu as portas para desenvolvedores externos. Foram feitos tantos títulos que já existe até um app Android que funciona como um catálogo para os aplicativos destinados ao Pebble. No seu caso há ainda uma condição especial: o
relógio conta com um sistema operacional próprio, o Pebble OS. Foursquare, Yelp e outros apps móveis clássicos prometem versões para o acessório.

No futuro, dependendo da escala atingida por esses acessórios, é provável que surjam lojas de aplicativos dedicadas inteiramente àqueles de maior sucesso. Ou pelo menos haverá seções para cada um dos principais acessórios dentro das lojas atuais. Não será algo inédito, se considerado o exemplo da Apple, que dividiu sua App Store entre títulos para iPhone e iPad.

Os apps para wearable devices tendem a replicar os modelos de negócios já existentes. haverá apps pagos; outros gratuitos, mas com vendas in-app; e também aqueles totalmente gratuitos, bancados por publicidade. Uma novidade talvez seja a oferta de serviços de assinatura atrelados ao acessório em si e seu app oficial. O primeiro exemplo é o FiLIP, um
relógio conectado para crianças. Dotado de GPS e um SIMcard para se conectar à rede celular, ele informa a localização
do seu portador e também funciona como um telefone, que consegue ligar para números pré-programados apertando um único botão. Nos EUA, o FiLIP será vendido como serviço, em uma parceria com a operadora AT&T, por meio de uma mensalidade cobrada na conta telefônica. No Brasil, a desenvolvedora paulista Intuitive Appz tem planos de lançar uma pulseira para crianças que cumprirá função similar, sendo controlada remotamente pelo smartphone dos pais.

Ceticismo

A empolgação com wearable devices não é uma unanimidade na indústria. Leo Xavier, sócio-diretor da Pontomobi, uma das maiores produtoras de apps móveis do Brasil, é cético em relação à adoção em massa dos novos aparelhos: “Acho o celular um apêndice chato de ser carregado o dia inteiro: não pode perder, deixar cair etc. Agora teremos o apêndice do apêndice. Acho que é a velha lógica de se criar necessidades. É minha opinião pessoal.”

Especialista em avaliação de usabilidade de sites e apps móveis, Leandro Ginane, fundador e CEO da DeviceLab, pondera que o uso desses acessórios só vai fazer sentido se houver apps que agreguem valor no dia a dia das pessoas. “Os desenvolvedores deveriam ter como ponto de partida um problema a ser resolvido. Têm que pensar em algo que melhore a vida das pessoas”, diz. Xavier concorda: “Às vezes é necessário tirar um pouco da glamourização sobre as tecnologias. O foco precisa estar no consumidor. O problema da Internet das coisas é pensar nas coisas, não nas pessoas”.

Os wearable devices despertam ainda desafios relacionados à privacidade e à segurança. O Google Glass foi tema de intenso debate nos EUA por conta da possibilidade de se gravar vídeos sem ser notado. Outra questão pertinente: será permitido dirigir usando óculos conectados?

Futuro

Os obstáculos não impedem que se sonhe com outras novidades. Muita gente aposta que em breve haverá roupas conectadas, que vão coletar dados sobre o nosso corpo, como temperatura e transpiração. E a conectividade não se limitará a itens do vestuário. “Tudo à nossa volta pode ser conectado e fornecer informações interessantes, até uma cadeira de escritório: ela pode monitorar a sua postura, medir seu peso, massagear suas costas… Uma porta pode registrar o horário de entrada e de saída de pessoas e administrar a senha da fechadura”, imagina Masi, da Movile.

Lucas Longo, diretor do iai?, escola especializada em cursos de desenvolvimento móvel, sonha com a futura fusão entre biologia e computação, quando poderemos ter implantes conectados dialogando com órgãos do corpo humano. E quem sabe um dia, em vez de óculos conectados, teremos lentes de contato conectadas? Quem viver verá as iLenses.

* Matéria orginalmente publicada na edição impressa da Teletime de novembro de 2013

 

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