Assumir uma das maiores empresas de tecnologia do Brasil em meio a uma pandemia mundial não é tarefa fácil. Por isso, Patrick Hruby, o novo CEO do grupo Movile, começa a entrevista com Mobile Time se descrevendo, antes de mais nada, como um otimista. Ele deixa claro que a prioridade da companhia, neste momento, é proteger a saúde dos seus funcionários, garantir a sustentabilidade do negócio e, ao mesmo tempo, assumir um papel de liderança na sociedade, procurando ajudar toda a sua cadeia de valor, que abrange desde entregadores de comida e pequenos restaurantes, no caso do iFood, até artistas e produtores de eventos no caso do Sympla, por exemplo, e muito mais.
Embora prefira não falar muito dos planos de longo prazo, já que admite que é impossível prever como ficará o mundo nos próximos meses, Hruby revelou pelo menos uma diretriz: a Movile quer entrar em novas verticais por meio de aquisições. A procura é por empresas no Brasil cujas soluções possam ser futuramente exportadas. A Movile mantém a ambição de ser uma empresa global de tecnologia e impactar a vida de pelo menos 1 bilhão de pessoas.
Mobile Time – Como é assumir a liderança de uma grande empresa como a Movile no meio dessa pandemia?
Patrick Hruby – É um desafio é incrível, uma responsabilidade enorme. Já seria, com ou sem esse momento, mas agora é muito diferente. Me considero muito otimista, todo mundo que trabalha em tecnologia tende a ser. E eu sou mais que a média, e sigo sendo. Vamos passar por isso, vamos atravessar bem, e as decisões que estamos tomando hoje vão ajudar o que será do outro lado dessa crise. E fico inspirado com o que estamos fazendo no grupo para criar uma sociedade melhor e reduzir o impacto no que a gente está passando.
Nossas prioridades para hoje, para amanhã, para a próxima semana são resumidas de forma clara em três partes: 1) proteger a saúde dos nossos funcionários, dos seus familiares e dos nossos parceiros – essa é a prioridade número 1 porque sem saúde não tem nada; 2) sustentabilidade do nosso negócio, tentando atravessar de forma sustentável esse momento; 3) assumir um papel de liderança para ajudar a sociedade a superar essa crise.
Poderia contar quais medidas estão sendo tomadas em cada uma dessas prioridades?
Desde o começo de março todos os funcionários que podiam já foram trabalhar de casa. Foi uma medida que tomamos bem cedo nesta crise. Acho que fomos uma das primeiras empresas a fazê-lo. E estamos preocupados com a cadeia inteira. Para entregadores, lançamos um fundo de R$ 1 milhão caso algum viesse a contrair o coronavírus e precisasse ficar em casa para se tratar e reduzir risco de contágio. À medida que a situação foi evoluindo fomos adaptando nossas decisões. Aumentamos a quantidade de informações e a distribuição de álcool gel, e criamos um segundo fundo não apenas para tratar quem contraísse, mas reduzir a chance de pessoas de risco contraírem a doença. Qualquer entregador acima de 65 anos está automaticamente deslogado do app, mas segue recebendo a mesma renda de antes, agora para ficar em casa. O mesmo vale para aqueles que comprovem ter doenças críticas: asma, doenças renais etc. Todos esses vão ficar em casa e cuidar da saúde sem se expor ao risco. Estamos tomando ações para toda a nossa cadeia de valor.
Sobre a sustentabilidade do negócio: somos empresas com fins lucrativos, temos missão importante e, para tanto, a conta precisa fechar. Para isso, nosso foco tem sido a contenção de despesas não essenciais. Estamos focando na redução de investimentos em marketing, segurando novas contratações, enfim, tudo o que é possível para evitar qualquer demissão. Não estamos aqui para fazer promessa, porque é impossível prever o que acontecerá em um, três ou seis meses. Falamos com transparência e fazendo de tudo para que não haja demissões. Estamos priorizando os empregos de todos os profissionais e tomando ações cabíveis para isso.
Quando a gente pensa no iFood, os restaurantes estão passando por dificuldades. Por isso lançamos um fundo de R$ 50 milhões para que os restaurantes reduzam as taxas de entregas. E lançamos uma iniciativa em parceria com Itaú e Rede: um fundo de R$ 2,5 bilhões para antecipar o dinheiro que esses restaurantes têm a receber. São medidas que buscam a sustentabilidade do nosso negócio e de toda a cadeia.
Quais negócios do grupo são mais impactados por essa situação?
Temos um ecossistema de muitas empresas. O impacto é bem diferente em cada uma delas. No caso da Sympla, os governos estaduais proibiram aglomerações e eventos públicos. Grande parte da receita da Sympla vem da venda de ingressos. Por isso, a Sympla antecipou um projeto no qual trabalhava há alguns meses, e que agora está em beta: um produto de streaming que busca trazer o show, a cultura, para a casa, possibilitando que artistas e produtores tenham receita com isso. A dificuldade, porém, não é levar o show para a casa das pessoas. É fantástico artistas estarem fazendo lives no Instagram, no Youtube e no Facebook. Qualquer tipo de beleza nesse momento é importante, mas os artistas vivem disso, dessa arte, não é um hobby. Então buscamos junto com eles uma forma de gerar receita. Esse produto de streaming está em teste.
O Playkids, por sua vez, traz bastante conteúdo e focado no público infantil e vemos um aumento de uso agora. Mas qualquer impacto precisa ser entendido como um impacto até o dia de hoje: não dá para prever como será na semana que vem. Hoje vemos um aumento da procura pelo app do Playkids. Há muita gente tentando trabalhar de casa e pais buscam alternativa com conteúdo de curadoria boa, sem anúncios, para seus filhos, de forma que possam ficar tranquilos . O Playkids oferece isso. E oferece bastante conteúdo de forma gratuita, como conteúdo educativo de lavagem de mão e técnicas para isolamento social. Temos também alguns apps de jogos. O PKXD vinha tendo um crescimento exponencial já no fim do ano passado e segue nessa tendência. Dá para ver isso pela quantidade de vídeos que as próprias crianças postam delas jogando e de sua dinâmica de jogo. É algo que pegou. Temos bastante otimismo. Estamos bastante animados.
E na Wavy?
Neste momento vemos aumento da busca por soluções de bots e de customer experience. Essa parte na Wavy tem tido um crescimento bastante expressivo. Já era uma tendência do mercado como um todo, mas nesse momento acelerou-se a busca por esse tipo de solução porque as empresas querem estar próximas dos seus consumidores. As pessoas querem interagir: não é todo mundo que quer ligar para um 0800 ou central de atendimento. Eu prefiro muito mais mandar uma mensagem por WhatsApp assíncrona e ver a resposta depois.
No iFood o impacto está sendo positivo, com o aumento dos pedidos de comida em casa?
É cedo para dizer. Tem muitos fatores acontecendo. Eu, pessoalmente, aumentei minha demanda por iFood. Pedi bastante comida em casa e supermercado em casa. Procuro falar com os entregadores e eles contam que os restaurantes estão fazendo bastante vendas. Mas está cedo, essa crise é de saúde e também econômica, então vai ter impactos em várias frentes. É impossível prever qual será a situação nas próximas semanas.
O Uber Eats, concorrente direto do iFood, anunciou a expansão para outras verticais, como farmácias e lojas de conveniência. O iFood fará o mesmo?
Hoje temos mercados, como hortifrutis, segmento que vemos bastante oportunidade para o futuro. Exploramos crescimento nessa vertical. Mas não há planos para outras verticais como farmácia ou coisas do tipo.
A longo prazo, quais são seus principais objetivos à frente da Movile?
Temos planos, mas estão em pausa. Não quero parecer louco de falar em planos incríveis para o futuro nesse momento que estamos passando. Espero poder falar mais daqui a algumas semanas, se tudo der certo. Continuamos querendo impactar a vida de 1 bilhão de pessoas.O resultado será uma empresa de tecnologia brasileira no mesmo nível e potencial das grandes empresas de tecnologia do Vale do Silício. Eu tive a sorte de trabalhar em duas delas, Google e Facebook, e a Movile tem tudo para ser a próxima empresa de tecnologia global, resolvendo problemas brasileiros e exportando para o mundo. E como faremos isso? Por meio de três vertentes: 1) crescimento exponencial de todos os negócios que temos hoje: uma vez passada essa crise, Sympla, Zoop, Playkids, Wavy, todas vão crescer; 2) estamos abertos e vamos buscar crescimento em novas verticais, novas linhas de mercado, que complementem nosso ecossistema atual, que possam nos levar a outras direções, ou seja, estamos de volta às compras para expandir; 3) vamos fazer isso de forma a assumir papel de liderança na sociedade, de criar empresas melhores e mais justas, em uma sociedade que a gente se orgulhe de viver. Vamos trabalhar a sustentabilidade nos nossos negócios, e a diversidade também. Vamos trabalhar nessa frente como um diferencial competitivo, não só por ser a coisa certa a ser feita. Acreditamos que nos tornamos uma empresa melhor ao fazer isso. Somos uma empresa com funcionários que representam a sociedade, e temos produtos que atendem a diversas necessidades da sociedade. Queremos aumentar o número de mulheres em posição de liderança, queremos aumentar o número de negros na empresa, e vamos trabalhar para que outras empresas façam o mesmo.
As próximas aquisições serão no Brasil ou no exterior?
Nosso foco hoje é olhar novas verticais no Brasil. Queremos empresas brasileiras que resolvam problemas do Brasil. Mas nosso objetivo de impactar 1 bilhão de pessoas só será atingido se tivermos sucesso fora do País. Queremos empresas que resolvam problemas brasileiros mas que possam ser exportadas para a América Latina e para resto do mundo. O PKXD saiu de Campinas e faz sucesso nos EUA, na Turquia, em Israel, e em vários outros países. É esse tipo de crescimento é que a gente procura.
E quando atingirão a marca de 1 bilhão de pessoas impactadas?
Vamos chegar o mais rápido possível. Mas hoje é difícil prever quando.
Você passou alguns anos no Google e no Facebook. Pretende levar para a Movile algum aprendizado que teve nessas gigantes da Internet?
Sempre me perguntam como é a Movile em comparação com essas empresas. Estive no Google no Vale do Silício, de 2005 a 2012, e depois no Brasil, cuidando da América Latina pelo Facebook, de 2012 a 2019. Quando olho para a Movile, vejo que tem as sementes que geraram o sucesso no Facebook e no Google. Já estava animado quando entrei na Movile, mas quando vi de perto fiquei ainda mais. Google e Facebook são empresas ‘mission driven’: as pessoas estão lá para atingir uma missão, os funcionários acreditam nessa missão. É mais do que salário e emprego. E vejo isso muito forte no grupo Movile. As pessoas têm cultura e valores muito fortes, o que é importante. E Google e Facebook são empresas que fazem dinheiro. Elas têm modelos de negócios bem definidos, são lucrativas, e com essa rentabilidade podem seguir crescendo. A Movile tem modelo de gestão forte e presente, é inovadora e criativa, mas é também forte em fluxo de caixa, Ebitda, resultados etc. Por outro lado, acho que Google e Facebook demoraram a assumir o papel que eles têm na sociedade. Foi o caso do papel do Facebook nas eleições, na democracia. Ele demorou para assumir esse papel. E depois botou muito dinheiro e gente bem intencionada para resolver esse problema. Agora faz um bom trabalho. Mas a percepção da sociedade é de que estão correndo atrás do prejuízo. A Movile assumiu esse papel de forma pró-ativa antes que a demanda viesse da sociedade sobre nós. Sabemos que é importante termos presença e liderança como empresa brasileira, trabalhando com o governo brasileiro e resolvendo os problemas que temos aqui. Vamos trabalhar muito fortemente com foco em criar uma empresa mais justa.
Ainda há planos de fazer um IPO da Movile?
Não temos planos hoje. Não há nenhum trabalho em paralelo sendo feito para isso. Não descartamos, mas não há nada nessa linha hoje.
Por fim, como é substituir o Fabrício Bloisi como CEO da Movile? Afinal, o nome e a imagem da empresa estiveram muito associados a ele por tantos anos. Vai mudar alguma coisa na cultura da empresa com você de CEO?
Gosto de pensar que estamos com o melhor dos dois mundos. O Fabrício assume papel de presidente do conselho, em que fará o que faz de melhor: traçar estratégia de longo prazo e contribuir com a visão que só um cara visionário pode ter, como o Fabrício. Isso reduz um pouco o papel de dia a dia dele na Movile. Mas vai ele vai poder investir mais tempo no iFood (além da presidência do conselho da Movile, Bloisi acumula o cargo de CEO da empresa de delivery) e no planejamento para alçar voos mais altos e globais, que é a nossa ambição. Ganhamos com Fabrício com mais tempo no iFood e a Movile ganha com ele nesse papel estratégico, como um dos maiores acionistas da empresa. Isso me permite focar nas outras empresas do grupo e ajudá-las a crescer, assim como a trazer novas empresas para dentro do nosso ecossistema.
Gostaria de comentar mais algum ponto?
As ações que tomamos agora vão mudar a empresa que teremos após essa crise, e nossa sociedade também. E sinto que já está mudando. As pessoas estão redescobrindo o valor do jornalismo sério. Isso já está acontecendo e espero que aconteça cada vez mais. Espero que isso continue nessa linha.