“Dados são o novo petróleo”, foi a citação de Clive Humby, matemático londrino especializado em ciência de dados, para defender a ideia de que os dados são tão valiosos quanto o petróleo.
Foi com base nessa linha de entendimento que o Governo Federal, por meio da Medida Provisória (MP) nº 954, publicada em 17 de abril de 2020, determinou que as empresas de telecomunicação compartilhem dados com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para fins de suporte à produção estatística oficial durante a atual situação de emergência de saúde pública decorrente do novo coronavírus.
Ainda que revestida de “boas intenções”, sob a argumentação de que tais dados serviriam para subsidiar o IBGE de informações pessoais de cidadãos para a produção de estatística oficial e a realização de entrevistas não presenciais durante o período da pandemia, resta evidente que tal norma reveste-se de flagrante inconstitucionalidade.
A MP malfere os direitos fundamentais de proteção à personalidade e aos dados, previstos constitucionalmente e em legislação infraconstitucional, especialmente a Lei nº 13.709/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Neste espeque, o artigo 5º, incisos X-XII da Constituição Federal (CF), expressamente resguarda a intimidade, a vida privada, as correspondências e as comunicações dos cidadãos, conforme pode-se depreender:
X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XI – A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
XII – É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
Por sua vez, a Lei nº 13.709/2018 (LGPD) alberga as mesmas garantias constitucionais e direitos fundamentais em seu artigo 2º, que assim prevê:
Artigo 2º – A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos:
I – O respeito à privacidade;
II – A autodeterminação informativa;
III – A liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião;
IV – A inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem;
V – O desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação;
VI – A livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e
VII – Os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.
Ou seja, os dados pertencem, exclusivamente, aos cidadãos titulares desses dados, e não podem de forma desautorizada, ser repassados para terceiros.
Soma-se a isso ao fato de que os dados a serem compartilhados, conforme previsão da malsinada legislação, foram colhidos através de informações prestadas por cada indivíduo, em seus contratos particulares mantidos com empresas de telefonia móvel ou fixa e, exclusivamente, para esse propósito específico, o que, per si, não autoriza outra destinação, nos termos do que dispõe o artigo 6º, da LGPD:
Artigo 6º – As atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e os seguintes princípios:
I – Finalidade: realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades;
A Medida Provisória 954/20 não permite inferir, com clareza, quais sejam os reais motivos a que se destina esse compartilhamento de dados em massa, estando as justificativas sobremaneira vagas de que o uso desses dados se prestariam a otimizar as entrevistas remotas a serem realizadas pelo IBGE, em pesquisas oficiais, em razão desse período excepcional de pandemia decorrente do coronavírus.
Recentemente, em 7 de maio de 2020, por ocasião do julgamento de ações diretas de inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu diversas violações constitucionais, tendo, na ação direta proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), sido determinada a suspensão da Medida Provisória. A ministra-relatora Rosa Weber, em seu brilhante voto, assentou o entendimento de que não haveria interesse legítimo para o compartilhamento em massa de dados, nesses termos: “Ao não definir apropriadamente como e para que serão usados os dados coletados, a Medida Provisória não oferece condições para avaliação da sua adequação e necessidade”.
Trata-se de um marco histórico no País, pois, de forma expressa, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito fundamental à proteção de dados.