A pandemia fez o Brasil experimentar a telemedicina e seu debate avançar em pouquíssimo tempo. O assunto é polêmico ainda, mas muitos atores – como médicos, pacientes e reguladores – já sabem que as consultas online vão permanecer depois que a pandemia passar. No momento, a telemedicina está autorizada em caráter excepcional e temporário unicamente por conta da crise causada pelo novo coronavírus. E, por causa dessa regulação, o País deve sacramentar a telemedicina, de vez, assim que a crise deixar de existir no papel. Com esta terceira matéria da série especial sobre um ano de pandemia no Brasil, Mobile Time aponta as divergências e as convergências que o assunto traz à superfície. Confira ainda a primeira reportagem, sobre as tecnologias de medição de distanciamento social a aglomeração que perderam força no País, e a segunda, a respeito do impacto da pandemia na telefonia celular do Brasil.
Antes, uma rápida explicação: quem regulamenta a prática da medicina é o Conselho Federal de Medicina (CFM). E caso a pandemia acabe e o decreto extraordinário que regulamenta a telemedicina perca sua validade, duas situações podem ocorrer: o Congresso Nacional vota um Projeto de Lei sobre o tema ou o CFM aprova sua nova regulação. Vale dizer que há uma série de PLs na casa legislativa. O primeiro encontrado por este noticiário data de 2012. Mas há também o PL 4127/2020, de autoria de Rejane Dias (PT/PI), o 6773/2016, além do PL que deu origem à atual regulamentação, o 696/2020, de Adriana Ventura (Novo/SP), transformado em Lei Ordinária 13989/2020.
O movimento no Congresso para avançar com o tema se traduziu em uma Frente Parlamentar Mista da Telessaúde, tendo como presidente Ventura, e lançada em novembro do ano passado.
“Não há consenso, então, é preciso conversar. O fato é que a telessaúde veio para ficar e temos que encontrar uma maneira. O grande ponto é democratizar a saúde e melhorar os serviços do SUS”, diz a deputada.
As divergências
Durante seus debates, foi visto que existem dois pontos divergentes apoiados pelo CFM e rechaçados por outras instituições e parlamentares: a primeira consulta deveria ser presencial; e o médico estaria limitado a realizar teleconsultas apenas em seu município. Um terceiro ponto, menos polêmico, seria que o valor da consulta online deveria ser o mesmo da praticada no presencial.
“Todos os aspectos abro mão e discuto. Mas esse é um atraso. É não oferecer algo que já está na nossa mão para o bem-estar da população”, afirma Caio Soares, diretor de medicina do portal Teladoc. “O CFM diz que a autonomia do médico é preeminente a respeito da prescrição de hidroxicloroquina. Ou seja, quem quiser que prescreva. Da mesma forma deveria ser a telemedicina, então. Se o médico acha que é válida, que assuma a responsabilidade”, diz Soares. “Usando, claro, os preceitos éticos que valem da consulta presencial para a não presencial. Não tem porque ser diferente. Mas o médico precisa ser treinado para identificar situações para prever que o paciente precisa de consulta presencial”, provoca.
A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) também apoia a regulamentação, mas acha que essas questões “corporativas” podem inviabilizar a telemedicina. “Se não tiver uma lei que traga segurança jurídica, as empresas não continuarão a oferecer o serviço”, diz Vera Valente, diretora executiva da FenaSaúde.
Com relação à proibição de que médicos não possam atender fora de seu território, Valente retruca com o fato de que a maioria dos profissionais encontram-se na região sudeste do Brasil. “Ela concentra 53,3% de todos os médicos registrados no País, enquanto a região norte conta com apenas 4,6%. Para se ter uma ideia, no Distrito Federal, para cada 1 mil habitantes tem cinco vezes o número de médicos do Amapá, Acre e Pará juntos”, justifica.
“O marco legal seria a forma mais importante de dar a segurança jurídica. Só uma resolução do CFM não tem segurança jurídica. Tem que ser uma lei o mais abrangente possível”, opina a diretora executiva da FenaSaúde.
Valente lamenta que alguns pontos estejam truncados pois a telessaúde é um tema que consegue alinhar com toda a sociedade. “Todos são pró-telessaúde. O calo, a pedra no sapato, é um grupo, que é uma barreira, e eles têm uma representação do conselho. Existe um medo de que os médicos e as clínicas locais percam pacientes (sobre o médico clinicar online fora do seu município). Mas o presencial tem sempre o seu espaço. O paciente gosta. É preciso saber medir. Nem tão ao céu, nem tão à terra”, resume Valente.
Números
De acordo com os dados coletados entre os 15 associados da FenaSaúde, foram realizadas 1,6 milhão de teleconsultas entre abril e dezembro de 2020. Em 90% delas, o paciente teve seu caso resolvido pelo atendimento virtual. A Federação abarca 40% do mercado e as quatro maiores operadoras do sistema fazem parte do grupo.
O CFM
O Conselho Federal de Medicina não é contra e sabe que a telemedicina precisa e deve se desenvolver no Brasil. Mas, para que a medicina possa ser exercida por meio de uma tecnologia, é preciso segurança. É o que acredita Donizetti Giamberardino, vice-presidente do CFM: “Há uma resolução sobre telemedicina de 2002 e, desde então, ela vem crescendo muito. Com um ano de pandemia, com exceção da vacina, os remédios são: distanciamento, a máscara e a lavagem de mãos. E houve um problema de acesso à saúde nesse tempo e a solução veio através da telemedicina. Na medida que médicos e pacientes começaram a usar, viram que é possível. A telemedicina não veio para substituir, mas para complementar o acesso à saúde”.
Giamberardino explica que em 2018 foi escrita uma nova resolução, mas que, “por política”, foi preciso revogá-la. Em seguida, se fez uma consulta pública para que médicos e especialistas dessem novas sugestões. A partir daí, o CFM reescreveu o texto.
“Estávamos para lançar a nova resolução quando surgiu a pandemia e a lei de calamidade. Em seguida, veio a portaria 47 e a lei da telemedicina, que, apesar de transitória, liberou seu uso”, explica Giamberardino. Por isso, o CFM recuou e aguarda o momento adequado para apresentar a nova resolução.
O vice-presidente do conselho aponta como um dos entraves a proteção de dados do paciente. “Fazer no WhatsApp, por videoconferência, são meios que não são seguros. É preciso uma normativa para fazer uma consulta por telemedicina, mas que seja com consentimento. É preciso que médico e paciente assinem um termo de concordância sabendo dos limites e que (a consulta online) pode se transformar numa presencial”, defende. “É preciso que este ambiente lembre a intimidade que existe entre médico e paciente, de modo que a pessoa se sinta à vontade para dizer aquilo que ela ache necessário. Imagina se uma imagem de um exame clínico escapa pela mídia. É imperdoável. Entendo que a telemedicina veio para ficar, sim, mas precisa ser bem regulamentada”, resume.
Outro ponto questionável
A Confederação Nacional da Saúde (CNSaúde) não questiona a importância da ferramenta de teleconsulta e da telemedicina como um todo. Para seu secretário executivo, Bruno Soares, trata-se de uma forma de se democratizar o acesso à saúde.
Porém, a preocupação da CNSaúde está em o cliente levar gato por lebre. “Tememos que uma pessoa compre um plano de saúde que lhe ofereça acesso a uma determinada rede e seus profissionais, mas não entregue isso, e outros médicos prestem o serviço. Ou a operadora não permita que você acesse esses profissionais”, explica Sobral. O secretário executivo teme que os mecanismos tecnológicos sejam utilizados pelas operadoras para limitar acesso ao consumidor àquilo que ele comprou. “A regulamentação precisa dizer que a telemedicina não pode restringir acesso”, complementa.
A CNSaúde também se preocupa com a proteção de dados do paciente e, por isso, convidou empresas e entidades para escreverem juntas um manual de autorregulação de saúde na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
A melhor lei é aquela que vai existir
Como há pontos polêmicos e falta consenso, tudo indica que a Frente Parlamentar Mista de Telessaúde ainda terá trabalho para elaborar um texto comum a todos os envolvidos. Para José Luciano Monteiro Cunha, coordenador do Comitê de Telessaúde da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), a melhor lei será aquela que sair do papel e passar a existir. “Queremos a melhor regulação possível – ou seja, aquela que será aprovada. Estou tranquilo com relação a isso. Acredito que o que passar lá (Congresso) será a melhor, que foi balanceada entre as entidades de classe e CFM porque todos serão ouvidos. Mas ela precisa ser agnóstica na tecnologia porque novidades vão surgir que não esperávamos. Novidades que nem imaginamos vão acontecer”.
“Qualquer mudança é um sufoco. É temerosa”, complementa Cunha. “Agora, o CFM é um órgão extremamente importante para questões médicas e éticas”, completa.