O novo texto do Projeto de Lei 2630, ou PL das Fake News, como é conhecido, e que cria cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, foi divulgado na noite da última quinta-feira, 28. Entre as principais mudanças da nova versão, que deve ser votada na próxima terça-feira, 2, estão a exclusão da proposta de criação de uma autoridade reguladora das plataformas digitais e a volta do CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil) a um protagonismo de governança.

“O novo texto resgata a participação do CGI.br não mais como uma entidade provisória até que se constitua a autoridade, como estava na última versão. Suas funções estão descritas como estava no texto inicial”, explica Flávia Lefèvre, advogada especialista em direito do consumidor e direitos digitais. Para ela, a nova versão tem alguns pontos positivos, como a necessidade de transparência das plataformas sobre os algoritmos.

Lefèvre ressalta o inciso terceiro do artigo 51 do PL, que aborda a responsabilidade do CGI.br de elaborar um código de conduta para as plataformas digitais. Nesta versão, o órgão será responsável por apresentar diretrizes para a elaboração de documentos direcionados aos provedores de rede sociais, ferramentas de busca e mensageria instantânea, inclusive obrigando estes serviços a tomarem medidas preventivas para conter a difusão em massa de conteúdo e enfrentar a desinformação.

“É esse código de conduta que pode garantir a governança dinâmica sobre as práticas das plataformas. O CGI.br é um órgão multissetorial e ele tem a flexibilidade de criar outras câmaras de discussão com ampla participação, o que é diferente do que estava se cogitando, que era deixar temas que afetam tantas áreas – como direitos fundamentais concorrência, direito à comunicação e jornalismo – para serem regulados por uma entidade como a Anatel. Na versão anterior do texto, dava a entender que seria um órgão autônomo e que poderia ser uma agência reguladora. E vimos que a Anatel já assinalou dizendo-se pronta para o trabalho, mas ela não dá conta de regular a Internet”, afirma a advogada.

Em nota, o CGI.br afirma que vê com bons olhos sua presença na formação da arquitetura regulatória prevista para a implementação da lei. No entanto, reforça a “a necessidade de aprimoramentos no que diz respeito às proposições de caráter fiscalizatório e sancionatório.”

Em conversa com este noticiário, Bia Barbosa, conselheira do CGI.br, eleita pelo Terceiro Setor, explica que as previsões colocadas para o CGI.br vão além da questão do código de conduta e de suas expertises.

“Entendemos que o CGI não deve ser o órgão regulatório, mas fazer parte da arquitetura regulatória, fornecer as diretrizes e os critérios e entender como isso vai ser implementado a partir de uma regulamentação que vai ser estabelecida. Quando o texto retira a questão de uma autoridade autônoma de supervisão, e não coloca nada no lugar, existe um vazio que precisa ser discutido sobre a implementação da legislação e a gente entende que o CGI.br deva ser ouvido nesses processos. Não entendemos que o CGI.br deva ser a entidade que vai fiscalizar o cumprimento da lei e muito menos sancionar, por isso a ressalva (na nota) a eventuais previsões sancionatórias e fiscalizatórias, que estavam antes para esta entidade autônoma de supervisão e que ficaram fora de lugar ou foram transferidas para o CGI, o que mudaria a natureza do comitê”, comenta.

Órgão fiscalizador

Na visão de Rafael Pellon, advogado especializado em direito digital e sócio-fundador do Pellon de Lima Advogados, foi positiva a retirada da criação de uma autarquia especial fiscalizadora das plataformas digitais, “já que há necessidade de conversas muito mais aprofundadas sobre o tema”. A proposta não havia sido bem recebida pela Câmara dos Deputados e setores da sociedade, que temiam uma politização da fiscalização. Orlando Silva (PCdoB/SP), relator do PL, afirmou à Globonews na quinta-feira, 28, que retirou esta parte do texto para que ele pudesse ser aprovado, devido à resistência que sofria.

Silva contou que ainda está em discussão se órgãos existentes poderiam atuar nessa fiscalização. Para Pellon, entidades como Anatel, CGI.br e ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) já “teriam condições de se debruçar sobre a regulação de plataformas digitais”. A outra alternativa, mencionada pelo deputado, seria deixar a arbitragem para o Judiciário, em caso de “contradições ou insuficiências na aplicação da lei”. A proposta diz que, em casos de descumprimento da lei e risco aos direitos fundamentais da população, a fiscalização será realizada nos termos de regulamentação própria estabelecida pelas plataformas.

“Defendemos que o Judiciário seja empoderado, treinado e que receba recursos para atuar de forma mais ágil, com conhecimento jurídico e do sistema de regulação brasileiro, para poder atuar rapidamente nos casos de infrações à lei, como já ocorre no dia a dia”, afirma o advogado. “O Judiciário tem o propósito de analisar e julgar infrações às leis e este papel não deveria ser terceirizado para plataformas ou outros órgãos sem que haja previsão legal para isto. Defendemos que, dada a complexidade dos temas de regulação digital, o Judiciário seja treinado e empoderado para que utilize seus conhecimentos jurídicos no avanço da regulação digital no País.”

Deveres das plataformas

O novo parecer apresentado por Silva estabelece às plataformas digitais o dever de cuidar do conteúdo publicado. O texto define que elas deverão agir de forma diligente para prevenir ou reduzir práticas ilícitas, combatendo publicações que incitem crimes de golpe de Estado, atos de terrorismo, suicídio ou crimes contra a crianças e adolescente.

“Destaca-se a retirada do texto da obrigação de vigília e punição imposta às plataformas, o que as tornaria de certa maneira censoras de conteúdos com riscos de punição solidária, sem que houvesse a observância aos princípios de liberdade de expressão e procedimentos de retirada de conteúdos estabelecidos no Marco Civil da Internet”, conta Pellon.

Segundo o novo texto, as empresas serão obrigadas a criar mecanismos para denúncia de conteúdos potencialmente ilegais; deverão cumprir regras de transparência; submeter-se a auditorias externas; e atuar contra os riscos sistêmicos dos algoritmos que possam levar à propagação de conteúdos ilegais ou violar a liberdade de expressão, de informação e de imprensa e ao pluralismo dos meios de comunicação social ou de temas cívicos, político-institucionais e eleitorais. As empresas poderão ser responsabilizadas por danos causados por meio de publicidade de plataforma e pelo descumprimento das obrigações de combater conteúdo criminoso.

“As obrigações atuais estão em linha com o que já é previsto nas novas leis europeias sobre regulação de plataformas, com o PL bebendo diretamente nesta fonte europeia, como já ocorreu no Marco Civil e na LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados]. O Brasil se alinha com a UE [União Europeia] no protagonismo da regulação digital, o que é muito bom se considerarmos que estamos tratando de plataformas globais. A única ressalva é que listar as obrigações de maior cuidado para tipos específicos de conteúdos no artigo 11 é sempre arriscado, pois esta lista tende a crescer conforme a sociedade avança, como já ocorreu na Alemanha e já ocorre em outros países”, analisa o advogado.

Remuneração a veículos

A proposta também determina que os provedores remunerem o conteúdo jornalístico e os conteúdos protegidos por direitos autorais, com regras a serem determinadas por regulamentação. Lefèvre acredita que o item do PL que trata da remuneração de empresas jornalísticas não realça a importância da isonomia das plataformas para não priorizar conteúdos de empresas que fizeram acordo com a plataforma digital. “Não existe ressalva de que essa remuneração e esses acordos podem ensejar privilégio para conteúdos das empresas que fizeram esses acertos com as plataformas. E acabamos caindo para abuso de poder econômico. O tratamento deve ser isonômico tanto para quem tem acordo como para quem não tem acordo de remuneração”, explica.

Como exemplo, a advogada lembrou do caso da Jovem Pan, que recebeu uma verba do Google por meio da Google News Initiative e o YouTube passou a recomendar seus conteúdos. A questão é que eram conteúdos enviesados, antivacina, entre outros. “Isso é um enorme risco para a democracia. Esse texto deveria ser muito discutido”, acredita. “Junta com a imunidade parlamentar e isso vira uma loucura”, continua. “Atualmente, os parlamentares são uma usina de fabricação de material de desinformação. Não dá para isso passar em regime de urgência, sem uma discussão. Existe uma consequência a curto e médio prazos para a nossa democracia. Mas acredito que isso será debatido no Senado”, completa.

Pellon acredita que a questão da remuneração a veículos jornalísticos não deveria ser discutida no PL das Fake News, pois na sua visão o tema não tem ligação com o objetivo da proposta de regulação das plataformas digitais. “O único país que a levou adiante, a Austrália, teve sucesso moderado com a proposta, já tendo identificado que o auxílio de seu órgão de regulação de mercados foi necessário para evitar que as grandes plataformas digitais escolhessem os veículos que seriam remunerados ou escolhidos para serem divulgados, sob o risco de se diminuir a quantidade e diversidade jornalística, que seria o grande risco deste tipo de medida”, argumenta.

Imunidade parlamentar

Outro ponto polêmico da proposta diz respeito à imunidade parlamentar. De acordo com a nova versão do texto, as contas de autoridades políticas em redes sociais são consideradas de interesse público, portanto estão sujeitas a regras específicas, que garantem imunidade parlamentar. Essas contas de políticos não poderão bloquear outros usuários ou restringir o acesso às publicações.

No que diz respeito ao assunto, Pellon não vê maiores riscos sobre a manutenção do discurso de parlamentares nas plataformas, pois abusos serão coibidos e punidos na forma da jurisprudência atual, pelo Judiciário. “A imunidade parlamentar prevista na Constituição já tem limites na jurisprudência e maior clareza sobre seus limites. A melhor forma de garantir que todos da sociedade sejam ouvidos seria justamente permitir que seus representantes se manifestem. Ao se manifestarem de forma ilícita, poderão ser punidos, como já temos visto atualmente no Brasil”, comenta.

 

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