As perplexidades que envolvem o direito à liberdade de expressão e a desinformação vão marcar 2024, que já começou trazendo debates intensos no Poder Judiciário, merecendo nossa maior atenção, tendo em vista suas consequências para a manutenção de garantias democráticas conquistadas com a Constituição Federal de 1988 (CF/88), especialmente neste ano de eleições municipais.

Estou me referindo à sentença proferida pelo juiz da 9ª. Vara Cível do Fórum Central de São Paulo, julgando parcialmente procedentes pedidos apresentados pela Jovem Pan para a exclusão do perfil do Sleeping Giants das redes sociais do Facebook e do Twitter – pedido este que foi negado –, retirada dos conteúdos postados pela associação relativos à campanha promovida pela entidade #desmonetizajovempan e indenização por danos morais.

Liberdade de Expressão e responsabilidade

Esse caso é emblemático e é prudente refletirmos sobre ele, pois o principal fundamento da decisão, que será objeto de recurso pelo Sleeping Giants, foi no sentido de que teria havido por parte da entidade abuso do direito de liberdade de expressão, causando impacto financeiro pela retirada de patrocínios que, segundo a decisão judicial, se deu como resultado da campanha para desmonetização.

E o curioso é que justamente o abuso do direito de liberdade de expressão, em virtude de desinformação voltada para enfraquecer o regime democrático no país, é o mesmo argumento que fundamenta a campanha de desmonetização levada adiante pelo Sleeping Giants.

Vale lembrar que o Sleeping Giants não está sozinho quanto ao entendimento de que a Jovem Pan estaria se comportando de forma ilícita e abusando do direito à liberdade de expressão. O Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP), em junho do ano passado, ajuizou Ação Civil Pública contra a empresa tendo como  fundamento o abuso do exercício da liberdade da radiodifusão, por alegado comportamento inidôneo pela promoção de “desinformação em larga escala”, atentando contra as instituições democráticas no país, tendo também enviado à Controladoria Geral da União, recomendação indicando a necessidade de adoção de “providências para instaurar processo administrativo sancionatório, (…), com o objetivo de aplicar à Jovem Pan, a penalidade de declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública”.

Nesse quadro dos debates em torno de limites para o exercício do direito à liberdade de expressão, importante mencionar que em decisão de dezembro último, com repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu o Tema 995, fixando o seguinte:

“1. A plena proteção constitucional à liberdade de imprensa é consagrada pelo binômio liberdade com responsabilidade, vedada qualquer espécie de censura prévia. Admite-se a possibilidade posterior de análise e responsabilização, inclusive com remoção de conteúdo, por informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas, e em relação a eventuais danos materiais e morais. Isso porque os direitos à honra, intimidade, vida privada e à própria imagem formam a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas.

2. Na hipótese de publicação de entrevista em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro, a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada civilmente se: (i) à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e (ii) o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios”.

A decisão do STF é importante, pois deixa claro dois aspectos, quais sejam: a liberdade de expressão não é um direito absoluto e b) o parâmetro para se identificar se há ou não abuso são os direitos individuais relacionados com a dignidade da pessoa humana.

Mas no caso do conflito envolvendo o Sleeping Giants, MPF e Jovem Pan o que se busca é a proteção de valores que estruturam o interesse público, como o direito à informação e proteção das instituições democráticas, com repercussões políticas e sociais no âmbito coletivo.

A Constituição Federal de 1988 e o controle social

Ou seja, tanto o Sleeping Giants quanto o MPF-SP agem com respaldo em disposições constitucionais e infraconstitucionais que estabeleceram diversos mecanismos de controle social, ampliando os espaços para a sociedade civil se envolver no desenvolvimento e aplicação de políticas públicas no Brasil.

No memorável discurso de promulgação da Constituição Federal em outubro de 1988, Ulysses Guimarães teceu comentários diferenciando representação política e participação social, ao tratar sobre o alargamento do exercício da democracia brasileira em participativa, para além de ser exclusivamente representativa: “É o clarim da soberania popular e direta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais”.

A CF/88 viabilizou a democracia participativa em diversos aspectos, atribuindo ao controle social o status de direito fundamental, quando estabeleceu a liberdade plena de associação, independentemente de autorização estatal, legitimando as entidades para a representação de seus associados tanto administrativa quanto judicialmente. Além disso, também legitimou qualquer cidadão para o ajuizamento de ação popular para a defesa do patrimônio ambiental, histórico e cultural públicos e da moralidade administrativa.

Contamos ainda com o Conselho da República como órgão superior de consulta da Presidência da República, conhecido como Conselhão, que, de acordo com a CF/88, traz entre seus integrantes “seis cidadãos brasileiros natos, com mais de trinta e cinco anos de idade, sendo dois nomeados pelo Presidente da República, dois eleitos pelo Senado Federal e dois eleitos pela Câmara dos Deputados, todos com mandato de três anos, vedada a recondução”.

Os Ministérios Públicos, por sua vez, foram legitimados para a propositura de ações civis públicas, que, de acordo com a lei específica, é instrumento para o reconhecimento da responsabilidade de pessoas físicas ou jurídicas por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, sendo que a lei específica, o Código do Consumidor e a Lei Geral de Proteção de Dados também legitimam  as associações da sociedade civil para atuarem na defesa de interesses coletivos e difusos.

Quando a CF/88 trata da destinação pelos poderes executivos de recursos públicos para o ensino ou saúde, por exemplo, submete esta atividade aos deveres de transparência, fiscalização e monitoramento por meio de órgãos administrativos internos, externos, assegurando “a criação, a autonomia, a manutenção e a consolidação de conselhos de acompanhamento e controle social, admitida sua integração aos conselhos de educação”.

Tratando do Sistema Nacional de Cultura, a CF/88 determina a “democratização dos processos decisórios com participação e controle social”.

A legislação infraconstitucional é farta quanto ao estabelecimento de mecanismos de controle social, como é a previsão em leis e decretos que regulamentam as agências reguladoras e outros órgãos da administração relacionados a importantes políticas públicas da obrigatoriedade de consultas públicas condicionando a produção normativa.

Vale mencionar ainda a previsão pela lei processual civil  do importante e muito utilizado instrumento do Amicus Curiae, estabelecendo que o juiz, “considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada” para atuar nos processos judiciais.

Esses são alguns dos exemplos de previsões legais que respaldam a existência hoje de centenas de conselhos com participação social no Brasil nas esferas federal, estaduais e municipais voltados para garantir que políticas públicas sejam executadas atendendo as reais demandas e vulnerabilidades da sociedade e sujeitas ao controle social.

A necessidade do reconhecimento da relevância pública do controle social

Sendo assim e considerando que o Sleeping Giants é entidade da sociedade civil que atua com vistas a reduzir o poder e influências negativas de empresas que com suas práticas estejam comprometendo valores públicos, promovendo desinformação, discursos de ódio e outros conteúdos ilícitos, o teor da sentença proferida na ação ajuizada pela Jovem Pan é bastante questionável.

Isto porque, como tem sido noticiado, a emissora está envolvida em investigações administrativas e judiciais, apoiadas sobre a alegada promoção de conteúdos desinformativos, com potencial de enfraquecer e desprestigiar instituições democráticas, o que justificaria a preocupação e a atuação da sociedade civil para proteger o interesse público. Ações voltadas para evitar danos não podem ser vistas como uso abusivo do direito de liberdade de expressão.

Além disso, se a Jovem Pan perdeu patrocinadores temos de reconhecer que o fato se deve à decisão de empresas que nem de longe teriam sido influenciadas apenas pela atuação do Sleeping Giants, mas em virtude de toda uma conjuntura política, relacionada inclusive à vitória do Presidente Lula e à mudança na estratégia de comunicação do atual governo.

Corrobora essa afirmação informações que têm sido publicadas de que em 2022, as rádios AM e FM da Jovem Pan News obtiveram R$ 1,68 milhão, a TV Jovem Pan News recebeu R$ 1,93 milhão e as plataformas digitais do Grupo Jovem Pan receberam R$ 96,5 mil do governo do então Presidente Jair Bolsonaro. Sendo que, em 2023, o Grupo não recebeu nenhum centavo do governo federal. Nesse sentido, é questionável a condenação do Sleeping Giants ao pagamento de indenização por perdas amargadas pela Jovem Pan que não guardam relação de causalidade diretamente com a campanha #desmonetizajovempan.

A atuação do Sleeping Giants, então, está afinada e respaldada em fundamentos legais e conjunturais, dentro dos limites do controle social; penalizar com indenização pecuniária de R$ 20 mil reais e cassar os conteúdos levados a público pelas redes sociais de entidade da sociedade civil que atua com o escopo de enfrentar práticas ilegais propagadas pela radiodifusão e pelas redes significará reduzir a relevância da participação social elevada pela CF/88 como instrumento sofisticado de defesa da democracia e soberania popular, bem como enfraquecer as garantias constitucionais de liberdade de expressão e vedação à censura.

 

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