O brasileiro é um crédulo. Em 2024, isto está mais do que comprovado. Assim como em outros países em que a maior parte da população luta para sobreviver e fechar o mês, com pouca perspectiva de evolução social, a sorte tem o poder de mudar realidades. E na sorte nos agarramos – e como!

O brasileiro se esbaldou, como havia se esbaldado também nos quase 10 anos em que os bingos voltaram a ser permitidos no Brasil, no intuito de ajudar clubes de futebol em dificuldades econômicas, funcionando de 1993 a 2004, quando então foram novamente proibidos, suspeitos de serem utilizados como lavagem de dinheiro, além dos problemas de vício em jogos de azar. A história, como se diz, está fadada a se repetir para aqueles que não aprendem com ela. E, em incríveis 20 anos, estamos lidando com o tema novamente.

Desta vez, contudo, o problema parece mais grave. Nos anos 1990 a conectividade mal caminhava no Brasil. Foi só no meio da década que iniciamos com a internet comercial no país (antes apenas universidades possuíam acesso, limitado, a partes da rede mundial). Em 2004, quando houve a proibição dos bingos, nem 3G havia. O iPhone só surgiu em 2007. Acessar à internet era um ato de semi bravura em redes fixas com conexões discadas.

Em 2024, muito pelo contrário, cada celular contém a alma digital de um brasileiro e representa sua persona avataresca. Se em países considerados desenvolvidos o problema das apostas online já é preocupante, imaginem o estrago de se permitir que qualquer um, a qualquer hora, em qualquer lugar, tente ficar rico com promessas de ganhos fáceis? Junte-se a vontade de mudar de vida com a facilidade e temos o cenário perfeito para o caos atual, que surpreendeu economistas, governantes e brasileiros em geral, ao sabermos que sim, o Brasil é uma aposta.

Agora que se descobriu que o descontrole, a falta de regulação, a ausência de cobrança de impostos e as regras de publicidade nos trouxeram a este cenário, abundam as iniciativas de regulação das bets, a proibição das casas de apostas que não apresentaram documentação ao Ministério da Fazenda e seus websites, chegando aos projetos para proibir totalmente a publicidade de apostas de todo tipo no país.

Os argumentos variam entre as questões de saúde pública, danos à economia popular, lavagem de dinheiro e outros tantos, ignorando os caminhões de dinheiro que serviram para a retomada dos clubes de futebol após a derrocada de suas receitas na pandemia, a salvação da mídia tradicional, que abraçou as bets com amor e carinho, além da promessa de impostos capazes de fazer superávit primário a partir de 2025. Enquanto muitos ganhavam, o brasileiro tentava ficar rico, acreditando em influenciadores e rifeiros que acabavam presos, vendendo sonhos de sofá, ops, de coach.

Temos então projetos de lei no Congresso para impedir a publicidade das casas de apostas e iniciativas do Ministério Público Federal para interromper a publicidade por meio de ações judiciais, o que poderia interromper a farra das bets, como se convencionou chamar esta quadra da história. O controle das apostas também passa por criar regras para a publicidade nas plataformas digitais, sem proibi-las, mas limitando sua divulgação, além de pedidos para que o Conselho Nacional de Autoregulação Publicitária – CONAR, entidades setoriais das próprias bets e associações de veículos publicitários se autorregulem, criando formatos para reduzir o uso abusivo de mensagens publicitárias.

A estas iniciativas se soma a proibição de apostas com cartões de crédito já implementada e que tende a evitar abusos e superendividamento de apostadores, já que não será possível estourar o cartão de crédito em apostas. O agiota do bairro, contudo, ficou feliz.

O Brasil, ao que tudo indica, está aprendendo que o dinheiro fácil da jogatina traz problemas de saúde pública e economia que não podem ser ignorados. A depender das lições aprendidas, iremos, quem sabe, finalmente discutir a sério a regulação do jogo no Brasil, tema que nos é tão complexo desde que o jogo do bicho foi colocado na ilegalidade por Getúlio Vargas nos anos 1940. E que retirar do ar mais de dois mil websites, por si só, não vai solucionar o tema.

Em outras paragens, a regulação do tema tem contornos similares aos de outros produtos potencialmente perigosos e igualmente desejados, tanto que a regulação de tabaco, drogas e jogos segue regras parecidas em publicidade, considerando limites à divulgação dos produtos em mídias, horários e tipo de audiência. O Brasil não é estranho ao tema, regulando a publicidade de tabaco e bebidas alcoólicas em lei federal e no Código de Ética do CONAR, onde se limitam justamente horários, meios e audiência que pode ser impactada, além de limitar as mensagens publicitárias permitidas, impedindo, por exemplo, promessas de riqueza fácil e sucesso.

Nenhuma iniciativa funcionará como uma bala de prata e o cenário mais provável é que tenhamos que conviver com os malefícios das apostas online tal qual convivemos há décadas com os malefícios dos jogos ilegais, o que também já é sabido por outros países que, mesmo limitando as formas de publicidade de apostas esportivas, reconhecem sua ineficácia.

De todo modo, iniciativas sérias tendem a nos trazer providências que:

  1. Impeçam mensagens publicitárias com promessas de ganhos repentinos e fáceis;
  2. Exijam cuidado ao realizar apostas e incentivem o uso recreativo dos jogos, sem apostas de valores relevantes;
  3. Limitem a quantidade de publicidade em determinados horários e meios;
  4. Limitem a quantidade de publicidade em meios desportivos, para não termos cenários como atualmente ocorre no Brasileirão e Copa do Brasil, com até 11 bets anunciando ao mesmo tempo seus serviços;
  5. Limitem os horários de exibição de publicidade online;
  6. Limitem os tipos de aplicativos e websites que possam receber publicidade de apostas, para evitar canais onde haja públicos vulneráveis, como crianças e adolescentes;
  7. Exijam controles para impedir a lavagem de dinheiro;
  8. Criem e gerenciem controles de apostadores contumazes, limitando suas perdas; e
  9. Criem canais de denúncias e apoio a viciados em apostas.

Temos um longo caminho e uma oportunidade para tratar do tema corretamente, mas precisamos discutir se as receitas e impostos prometidos pelo setor de apostas online nos trazem mais benefícios que malefícios, além de estudar quais limitações são mais eficazes. O tema é complexo e precisa ser acompanhado de outras iniciativas como o combate à lavagem de dinheiro, educação financeira e melhoria de perspectiva de vida. Já diria Cazuza, afinal, que o teu futuro é duvidoso, eu vejo grana, eu vejo dor, no paraíso perigoso, que a palma da tua mão mostrou.