Após duas tomadas de subsídios e muitas divergências, a Anatel caminha para a conclusão da proposta de novo Regulamento de Deveres dos Usuários, norma que concentra temas polêmicos no setor de telecom, como as chamadas abusivas e os aspectos competitivos no ecossistema digital. Fontes ouvidas pela reportagem nas últimas semanas apontam que o texto em análise considera a oportunidade de criar “um ambiente de relacionamento entre plataformas e operadoras”, indo para um caminho mais ameno do que o defendido pelas grandes teles.
No dia 31 de janeiro, o processo recebeu uma minuta, que agora está sob análise da Procuradoria Federal Especializada, e há expectativas de que possa avançar para consulta pública neste semestre. Os documentos, incluindo o relatório de análise de impacto regulatório, por enquanto, estão sob sigilo. Uma das principais questões analisadas nesta fase é até que ponto a Anatel pode ir quando o tema é competição no mercado digital, respeitando a competência da agência, limitada ao setor de telecom.
Em uma das tomadas de subsídios, realizada no ano passado, as grandes operadoras, representadas pela Conexis, encaminharam proposta de cobrança das plataformas digitais pelo tráfego gerado por elas, o chamado “fair share”. A sugestão da associação seria deixar a Anatel definir um percentual de ocupação de tráfego aceitável como teto de isenção, e as prestadoras decidiriam como medir o consumo de dados e o valor devido por gigabyte (GB) excedente.
Contudo, quando o tema é plataformas, a redação em estudo pela Anatel ainda está mais próxima de promover o diálogo do que propriamente uma obrigação. É uma abordagem “light”, classificou um interlocutor.
Fair share e deveres dos usuários
![Deveres dos usuários: Anatel quer construir "ambiente de relacionamento" entre big techs e teles 1 Deveres dos usuários: Anatel mira “ambiente de relacionamento” com plataformas](https://www.mobiletime.com.br/wp-content/uploads/2025/01/anatel_foto_carolina_cruz_mobile_time_2.jpg)
Foto: Carolina Cruz
O conceito de fair share provoca divergências. É popular entre as empresas contrárias – plataformas digitais e parte dos pequenos provedores – dizer que o “share” (uso ou quota) proposto não seria “fair” (justo). Não à toa, alguns preferem o termo “network fee” (taxa de rede). A preocupação da Anatel desde o início do debate sobre os deveres dos usuários foi identificar se de fato existe algum problema regulatório relacionado ao tema, antes de analisar se eventual cobrança seria um caminho, ponto repetido diversas vezes pelo presidente da agência, Carlos Baigorri, nos últimos anos.
Do lado das operadoras, o argumento combina dois principais pontos. Um deles é o de que as redes estariam congestionadas pelo consumo massivo de dados no acesso às plataformas, o que demanda mais investimentos para garantir o acesso a outros serviços, e o fair share seria uma solução para garantir a sustentabilidade das redes.
Neste sentido, a Conexis também encaminhou à Anatel – no âmbito da tomada de subsídios sobre o regulamento dos deveres dos usuários – um levantamento do tráfego fornecido pelas operadoras Vivo, Claro, TIM e Algar entre dezembro de 2023 e março de 2024, que mostrou que 66% do tráfego nas redes de acesso (a partir dos consumidores finais) se concentra em serviços de Meta, Alphabet, Netflix, Akamai e TikTok.
O segundo ponto destacado pelas grandes teles é o volume bilionário de investimentos aplicados pelas prestadoras em compromissos relacionados à regulação brasileira, enquanto que as big techs não possuem regulação, uma assimetria a ser observada.
Já as plataformas, atualmente representadas pela entidade AIA (Aliança pela Internet Aberta) quando o assunto é fair share, junto a associações de pequenos provedores de conexão, enxergam o tema a partir de uma ótica que também combina alguns pontos. O principal é a análise de que eventual cobrança poderia violar a neutralidade de rede, que considera o acesso igualitário, independente do conteúdo, empresa ou usuário. Além de considerarem que a demanda vinda das plataformas é positiva para os negócios.
Outra questão que parte dos provedores e as big techs batem na tecla é o de que há, sim, grandes investimentos em infraestrutura já aplicados pelas big techs, como os CDNs (redes de distribuição de conteúdo) e os cabos submarinos.
Debate promovido pela AIA no ano passado levou representantes do governo federal a concluírem não haver diagnóstico suficiente para validar o fair share. Na ocasião, o presidente executivo da AIA, Alessandro Molon, ressaltou que a taxa de rede era “um mau caminho, porque onde foi testada, não funcionou”.
O ministro das Comunicações, Juscelino Filho, já afirmou abertamente ser contra a medida. Por outro lado, o órgão considera importante avançar sobre algum tipo de contribuição setorial, que poderia compor um fundo para inclusão digital. Isto, no entanto, dependeria de um projeto de lei, que já chegou a ser previsto para 2024, mas ainda não avançou.
No Congresso, a discussão mais adiantada sobre eventual cobrança pelo tráfego de plataformas caminha para barrar tal possibilidade por meio do PL 469/2024, aprovado na Comissão de Comunicação da Câmara no ano passado, e que agora só depende de análise na Comissão de Constituição e Justiça para avançar para o Senado.
Chamadas abusivas
Para além do tema da competição no ambiente digital, a norma de deveres dos usuários também vai tratar das chamadas inoportunas, outro aspecto do uso das redes de telecomunicações que a Anatel tem se debruçado nos últimos anos.
Mobile Time apurou que há expectativas de o texto consolidar regras que já estão sendo aplicadas em medidas cautelares para barrar as chamadas abusivas, como o uso do prefixo 0303 como forma dos consumidores identificarem ofertas de produtos ou cobranças.
Imagem principal: ilustração produzida pelo Mobile Time com IA.