A audiência pública promovida pelo Cade nesta quarta-feira, 19, apresentou visões de que a Apple e o Google ocupam posições diferentes em relação ao impacto no ecossistema digital de dispositivos móveis, e talvez devessem ser submetidos a remédios de cunho concorrencial também distintos. Em meio à falta de consenso, o Conselho terá de analisar um conjunto de opiniões divergentes para decidir se os termos das lojas de aplicativos e meios de pagamento disponíveis nos sistemas operacionais violam a lei concorrencial brasileira e quais medidas precisam ser tomadas.

O debate foi convocado para discutir especificamente três processos e um recurso que tramitam no Cade tratando da mesma questão: se as empresas (Apple e Google) usam o poder de controle sobre o sistema operacional para favorecer os próprios serviços na oferta de aplicativos e transações financeiras. O tema não é novo, mas ganhou novos episódios que atingiram principalmente a Apple no ano passado e intensificou a busca por solução. 

A partir de uma representação de autoria do Mercado Livre, o Cade instaurou em novembro de 2024 um processo administrativo contra a Apple por suspeitas de abuso de posição dominante. Na representação, o marketplace ressaltou que a big tech “proíbe que quaisquer desenvolvedores distribuam bens e serviços digitais de terceiros”, que seria uma loja de aplicativo alternativa.

“Ou seja, a Apple fecha o mercado ao não permitir que o Mercado Livre ou qualquer outro agente econômico amplie a sua oferta de bens e serviços digitais produzidos por terceiros, transforme-se num marketplace de bens e serviços digitais, e assim concorra com a própria Apple que, sim, oferece este serviço”, sintetizou a plataforma de e-commerce ao Cade.

Para Mercado Livre, Apple inibe desenvolvedores

O segundo ponto destacado pelo Mercado Livre é o de que os termos impostos pela Apple “restringem o crescimento de desenvolvedores de bens e serviços digitais, para os quais a distribuição massiva de seus conteúdos é um fator crucial”.

“Em outras palavras, a proibição impede aos desenvolvedores de conteúdo digital ter acesso a um canal alternativo de distribuição e com isso restringe artificialmente não somente a capacidade de competir com a Apple, mas também seu crescimento e a possibilidade de adquirir a escala necessária para amortizar os seus investimentos”, alegou.

Em novembro do ano passado, ao instaurar processo administrativo contra a Apple, o Cade exigiu medidas que garantissem a “liberdade de escolha dos canais de distribuição e sistemas de processamento de pagamentos para compras in-app aos desenvolvedores e usuários iOS”. As ações seriam preventivas, enquanto o órgão apura a conduta.

A Apple então recorreu, alegando que “não há base legal ou precedente válido emitido no Brasil que permita concluir que a conduta sob investigação configuraria uma infração antitruste”.

Google

A decisão sobre a Apple impactou também outro processo, contra o Google, aberto preliminarmente ainda em 2019. À época,  a apuração foi motivada pela condenação do Google no âmbito da União Europeia por acordos firmados com fabricantes e operadoras (MADA, AFA/ACC e RSA), que implementaram, na prática, a pré-instalação de determinados apps do Google, com a contrapartida de receitas com publicidade. A deliberação no Brasil vem sendo adiada.

Em dezembro de 2024, no entanto, uma nota técnica do Cade indicou possível semelhança entre os temas apurados no caso Apple e no caso Google, o que explica os processos estarem sendo discutidos juntos na audiência pública.

“Tendo em vista a existência de indícios de que o Google estaria adotando medidas semelhantes àquelas adotadas pela Apple […], entende-se necessário investigar os indícios de infração à ordem econômica apresentados, com fins de averiguar a ocorrência das práticas e seus contornos, que, se comprovadas, são passíveis de enquadramento como ilícitos concorrenciais”, consta no documento.  

Já neste mês, o Cade então convocou a audiência pública, citando os processos que envolvem as duas big techs, e mencionando a necessidade de refletir sobre medidas que já estão sendo tomadas em outros países para evitar concentração no mercado, como a Autoriteit Consument & Markt (ACM) da Holanda, a Competition and Market Authority (CMA) do Reino Unido e a Australian Consumer and Competition Commission (ACCC) da Austrália.

O que dizem as big techs

A Apple foi a primeira a se manifestar na audiência pública realizada nesta tarde, representada por Pedro Pace, diretor jurídico da empresa no Brasil. Os argumentos contra a visão preliminar do Cade de que haveria condutas anticoncorrenciais por parte da empresa começaram com a apresentação de números da plataforma. 

Pace explica que a Apple cobra comissão por aplicativos em que a própria instalação é paga, ou que vendem bens e serviços digitais dentro do próprio app, mas diz que 85% deles não entram nesse grupo, e dos 15% que entram, a maioria tem comissão reduzida.

“Embora anualmente a App Store promova, aproximadamente, R$ 1,1 trilhão de dólares em faturamento e vendas globais, 90% desse valor é destinado a desenvolvedores e a empresas que não pagam comissão à Apple. […] Mais de 99,99% dos aplicativos iOS são desenvolvidos por terceiros, e em quase todas as categorias que a Apple concorre com aplicativos de terceiros, o aplicativo da Apple não é o mais popular”, disse o executivo. 

Durante a exposição, Pace destacou ainda que a opção por não permitir o sideloading (instalação de app fora da Apple Store) seria por motivos de segurança, e afirmou que o controle também é importante para barrar conteúdos como pornografia ou que sejam usados para cometer fraudes. 

“Só em 2023, a Apple removeu ou bloqueou mais de 35 mil aplicativos da App Store por desconformidade com nossas políticas antifraude, evitando operações irregulares que, se passassem ou fossem instaladas, somariam aproximadamente R$ 10 bilhões”, afirmou o diretor.  

Por fim, a empresa defendeu que o Cade “evite a importação de um regime estrangeiro que iniba a capacidade da Apple de ofertar aos brasileiros seus produtos e serviços […], ou que de qualquer outra forma prejudique uma economia digital que beneficia significativamente o país”.

O Google, por sua vez, representado pela executiva Regina Chamma, ressaltou que trabalham com um “modelo aberto”, “que só o Android oferece”, além da variedade de fabricantes e menores preços. “Brasileiros como Positivo e Multilaser oferecem dispositivos Android a partir de R$ 300. Com isso, acreditamos que o Android ajudou também a democratizar o acesso à internet no Brasil, que até hoje se dá em sua maior parte por meio de dispositivos móveis”, disse.  

A empresa ressaltou que o Google Play não é a única loja de aplicativo disponível. “Temos também a Samsung Galaxy Store e a Get Apps da Xiaomi, entre outras. Essa liberdade de escolha e compatibilidade garante que desenvolvedores não sejam aprisionados”, opinou. 

Chamma pediu que o Cade reconheça  também a competição entre Android e iOS. “Por exemplo, no terceiro trimestre de 2024, a Apple lançou o sistema operacional iOS 18 e logo na sequência, o Google lançou o sistema operacional Android 15, cada um introduzindo novos recursos de privacidade aprimoradas e conectividade via satélite, por exemplo. Essa rivalidade contínua leva ambos os sistemas operacionais a inovar e melhorar, beneficiando os consumidores”, disse.

Especificamente sobre o mercado brasileiro, o Google cita relatório da Access Partnership produzido em 2023, que estimou R$ 4 bilhões em receitas a desenvolvedores por meio do Google Play, para destacar impactos financeiros no país.

Em relação ao sideloading, a representante do Google comentou como um diferencial positivo do Android em relação ao concorrente. “Os desenvolvedores também podem distribuir seus aplicativos diretamente aos seus usuários. Essa escolha e flexibilidade só são possíveis no Android. […] a ampla possibilidade da escolha proporcionada por Android aos desenvolvedores, fabricantes e usuários, gera uma competição cada vez maior e saudável dentro da plataforma Android em relação a outras plataformas, como o iOS”, afirmou.

Para a segurança, Chamma argumenta que há APIs disponíveis que ajudam a detectar comportamentos suspeitos nos aplicativos. 

Games, pix e ‘match’

A Epic Games, que trava uma disputa jurídica contra Google e Apple desde 2018, fez críticas a ambas empresas. O diretor sênior de desenvolvimento de jogos, Mauricio Longoni, ressaltou que, depois da aprovação do Digital Markets Act, a Epic pôde lançar a Epic Games Store nos dispositivos iOS na União Europeia, “mas a Apple e o Google ainda se recusam a cumprir tanto o texto quanto o espírito da legislação europeia”.

“Eles [Apple e Google] estão impondo aos usuários experiências de instalação que são intencionalmente de baixa qualidade. Tanto no iPhone quanto no Android, eles sobrecarregaram o usuário com um processo longo e com o que chamamos de ‘scare screens’ ou telas assustadoras, que são etapas desnecessárias, configurações confusas nos menus dos dispositivos e mensagens enganosas ao longo de todo do processo”, disse Longoni.

A crítica também se dá aos meios de pagamento. “Se você é um desenvolvedor de aplicativos móveis que oferece ao consumidor a capacidade de fazer compras de bens digitais por meio do seu aplicativo, você é obrigado a utilizar os sistemas de pagamento da Apple ou do Google, ou seja, além dos desafios de mercado que os desenvolvedores já enfrentam, também estão submetidos a termos e taxas arbitrárias e onerosas de até 30%, ou então correm o risco de serem excluídos dos dispositivos iOS ou Android”, afirmou.

A gigante dos games, responsável por jogos que estão entre os mais populares no Brasil, argumentou com um exemplo prático: “A medida preventiva imposta pelo Cade permitiria a Epic a entrar no mercado brasileiro com a Epic Games Store para dispositivos móveis. A Epic Store oferece termos mais favoráveis aos desenvolvedores do que as lojas de aplicativos da Apple ou do Google”, argumentou Longoni. 

Já outros participantes do debate acabaram concentrando críticas principalmente à Apple. A Match Group, responsável pelo Tinder, representada pela advogada Priscila Brolio, classificou como “abusiva” as taxas que ficam com a empresa como parte da receita dos desenvolvedores. 

“O Match Group não está propondo que a Apple não seja devidamente remunerada pelos investimentos que ela faz na App Store, em segurança e privacidade. Mas nada justifica que o modelo de negócio da Apple se aproprie do fundo de comércio dos desenvolvedores, das informações dos desenvolvedores, dos clientes dos desenvolvedores”, disse a advogada, Priscila Brolio. 

A Zetta, associação do setor financeiro, representada por Eduardo Lopes, ressaltou a relevância dos usuários da Apple para o mercado, e o porquê dos desenvolvedores se sentirem reféns das regras. “Os consumidores da Apple têm um perfil de renda e de consumo muito superior aos consumidores de Android. Então, de fato, é algo que não dá para ficar de fora”, explica.

“A combinação entre a pouca mobilidade [migração entre sistemas] dos consumidores e a dependência dos desenvolvedores de terem que oferecer seus aplicativos nas duas plataformas permitem que a Apple tenha uma capacidade de impor restrições muito rígidas aos desenvolvedores. Permitem que ela possa criar barreiras artificiais para oferta de produtos e serviços de terceiros que possam concorrer dentro do seu ecossistema digital”, complementou.

Lopes também chamou atenção para impedimentos no pagamento por aproximação na Apple, que possui o Apple Pay como carteira padrão, e faz o alerta para impactos futuros na implementação do Pix por aproximação. “Infelizmente, a despeito dos esforços do Banco Central e da adoção pela população, as tarifas e o esforço de desenvolvimento requeridos pelas soluções proprietárias da Apple vão tornar, e já tornam, economicamente inviável a oferta de Pix por aproximação em dispositivos iOS”, criticou. 

Consumidores

Henrique Lian, diretor executivo da Euroconsumers Brasil, representando também a Proteste, Associação Brasileira de Defesa do Consumidor, contou que as instituições encaminharam ao Cade estudos que avaliam as ações antitruste implementadas em outros países, dando destaque para conclusões que reforçam haver diferenças relevantes entre os sistemas operacionais.

“Analisando aspectos dos serviços disponibilizados pelas plataformas que operam nos sistemas Android e iOS, nomeadamente Google e Apple, concluímos que apenas no segundo caso [Apple] seriam necessárias ações contundentes por parte da autoridade concorrencial”, disse.

Em síntese, a tese está alinhada aos argumentos do mercado sobre barreiras na loja de aplicativos – que estaria provocando o “locking” (aprisionamento) de consumidores e desenvolvedores – e também quanto às críticas aos métodos de pagamento, que configurariam “elevado grau de ‘self-preferencing’” das soluções da Apple.

“Assim, ainda que não detenha o maior market share do Brasil, inclusive devido ao alto custo dos seus produtos e serviços, a Apple é a empresa que mais abusa de seu poder de mercado no ambiente digital, impedindo a interoperabilidade entre as plataformas, lucrando excessivamente às custas dos desenvolvedores e prendendo os consumidores no seu ecossistema digital. Enfatizo que, evidentemente, na nossa análise, não há nenhuma prática similar no mercado brasileiro relativo ao ambiente Android, leia-se Google”, concluiu Lian.

Deliberação

Questionado pelo Mobile Time, o relator do recurso da Apple, conselheiro Victor Oliveira Fernandes, preferiu não indicar uma previsão sobre quando deve levar o caso a uma deliberação. 

Imagem principal: Pedro Pace, diretor jurídico da Apple participa remotamente de audiência pública no Cade. Crédito: Carolina Cruz/Mobile Time

 

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