Enquanto no Brasil teles, provedores, entidades de defesa do consumidor e a Anatel discutem os conceitos de neutralidade de rede e como refletí-los de acordo com o interesse de cada uma das partes interessadas no novo regulamento do Serviço de Comunicação Multimídia (SCM), nos EUA o debate sobre a neutralidade da rede entrou no centro do embate político entre republicanos e democratas.
Descontentes com a regulação da FCC (órgão regulador de telecom nos EUA) sobre o tema em dezembro de 2010, senadores republicanos apresentaram projeto de lei para reverter a "Open Internet Order" da FCC que garantia a neutralidade do tráfego de dados em redes na Internet, impedindo provedores, teles e empresas de TV a cabo de regularem que tipos de conteúdos e a velocidade em que os usuários os recebem.
A norma da FCC já fora criticada à época de seu lançamento por ambos os lados da disputa. Para defensores do conceito de neutralidade da rede, a norma não considerou diversos aspectos, além de não apresentar garantias a usuários de redes móveis – ausência que agora se critica também no regulamento de SCM brasileiro – e foi considerada muito modesta no intuito de permitir o tráfego livre de informações eletrônicas nos EUA. Já para defensores da possibilidade de regulação do tráfego web, a Open Internet Order prejudica o bom funcionamento técnico das redes, argumento também defendido pelas teles no Brasil.
Com a aprovação da norma, o Partido Republicano iniciou estudos para definir a melhor estratégia de combater a decisão do FCC, optando por apresentar o projeto de lei que foi rejeitado no Senado americano na segunda semana deste mês. Com ameaças de veto pelo Presidente Barack Obama e discursos inflamados dos democratas, a aprovação do projeto de lei em si não teria efeitos práticos, mas serviu para demonstrar quanta polêmica cerca o tema, tal como ocorre no Brasil.
Na visão dos republicanos, qualquer tipo de regulação estatal sobre a Internet é prejudicial aos investimentos neste mercado e poderia impedir o surgimento de novas empresas como Google e Facebook a longo prazo. O clássico argumento republicano de menos regulação estatal cai por terra, contudo, se analisarmos práticas como as tentativas da Comcast (maior provedor de internet por TV a cabo) de bloquear o dowload de vídeos e protocolos P2P e regular – ainda que de forma sutil – a velocidade em que determinados conteúdos eram apresentados aos usuários finais. A regulação da neutralidade pela FCC fora, neste aspecto, uma tentativa inicial de impedir tais práticas, consideradas uma forma de "censura branca" aos usuários.
Ainda assim, há incerteza sobre a melhor forma de controlar o fluxo de tráfego e até onde este deve ser livre. Já é sabido que com a revolução da web 2.0, o crescimento acelerado de websites de vídeo e a popularidade de aplicações de videoconferência, há sobrecarga das redes que compõem a Internet. Também já se sabe que a maior parte dos usuários de provedores – sejam eles de banda larga fixa, móvel ou por TV a cabo – não consome a banda que dispõem em excesso, cabendo a uma minoria o uso indiscriminado das redes para o tráfego de conteúdos mais pesados.
O temor dos detentores das redes é que tal prática se dissemine e o uso das redes fique prejudicado. Havendo normas tal como o Regulamento de Qualidade do SCM, em estudo pela Anatel, em caso de sobrecarga da rede e obrigação de neutralidade a qualquer custo não caberia aos provedores outra opção que não o aumento de investimentos para expansão das redes, mas este custo seria obviamente repassado aos usuários. Por esta lógica, é fácil concluir que a neutralidade das redes poderia se tornar prejudicial aos próprios usuários que tenta proteger.
Em um cenário onde é impossível prever de que forma a internet estará presente em nossas vidas no futuro breve, a necessidade de estabelecer regras mínimas de neutralidade das redes é premente para evitar prejuízos à competição das empresas que nascem e se alimentam da Internet.
Deste modo, governos e reguladores, inclusive associações representativas dos provedores, devem assumir sua responsabilidade em estabelecer claramente os limites das redes, isto é, até onde o tráfego deve ser livre e a partir de que ponto um usuário estará abusando da infraestrutura colocada a seu dispor, como tal abuso pode ser medido, como evitá-lo e quais as formas de punição cabíveis. Todos parecem concordar que não se deve classificar – ou barrar – quaisquer tipos de conteúdos que possam ser consumidos pela internet, mas apenas a forma de consumo, que pode se tornar abusiva.
Esta discussão passa também pelo próprio modelo de negócios adotado para a venda do acesso à Internet, onde se habituou ao consumo ilimitado de um ativo que não o é. O conceito de neutralidade, se bem implementado e regulado, poderá servir também para permitir a melhor adequação das formas de acesso à Internet, sua cobrança e definição clara de seus limites.
Até lá, urge-se aos interessados na questão que ousem em ser claros naquilo que desejam proteger, pois tanto os usuários quanto as redes merecem proteção.