É claro que a pergunta do título se trata de uma provocação. No atual estágio de desenvolvimento – tanto da indústria criativa como da tecnologia de modo geral – uma não consegue mais viver sem a outra.
A intersecção entre ambas tem sido objeto de estudo e consideração há pelo menos uma década e meia pelo hoje vice-presidente do Google Creative Lab, Robert Wong. Para ele, o que mudou foi o balanço dessa relação que, hoje, pende um pouquinho mais para o lado da tecnologia. Não é preciso concordar, mas a provocação carrega argumentos interessantes e eu já explico o porquê.
Mas, antes, gostaria de comentar essa relação à luz do que vimos este ano no Festival Internacional de Criatividade de Cannes. A inteligência artificial foi o grande assunto, talvez (na minha leitura) como uma forma de reação do mercado publicitário à onda avassaladora da IA generativa, que em apenas oito meses virou o mundo de cabeça para baixo – de novo.
E são exatamente os Midjourneys, Stable Diffusions e ChatGPTs da vida que parecem estar fazendo a balança pender para o lado da tecnologia. Afinal, a IA generativa tem potencial não só para complementar e estender a capacidade humana, mas também para apontar novos caminhos e criar novas possibilidades.
A L’Oréal é um bom exemplo: uma marca centenária, referência na indústria global de beleza e que, por isso mesmo, traz consigo um importante legado – mas um legado que não se tornou um peso. A empresa vem se mobilizando de forma muito interessante para migrar do ambiente físico para o digital, mudando a cultura da beleza para adicionar personalização, sustentabilidade e inclusão.
Eles souberam se reinventar, usando a tecnologia para se adaptar às novas jornadas de consumo, especialmente no caso da geração Z – de fato, estamos falando de toda uma nova geração de consumidores, mais conscientes, mais preocupados com o meio ambiente, com a responsabilidade social das marcas, mas também mais individualistas.
É aí que a tecnologia muda o jogo, ao permitir que se converse com grupos gigantescos de pessoas, uma a uma, para daí extrair dados, que vão virar insights, que vão alimentar a criação e que podem gerar soluções inovadoras e disruptivas.
Nesse sentido, a intersecção da tecnologia com a criatividade se dá ainda na fase de concepção da campanha, antes mesmo da criação das peças. A campanha da agência Gut Buenos Aires para o PedidosYa, aplicativo de delivery mais popular da Argentina, ilustra bem como a tecnologia pode ser a base da criação.
A ação é de uma simplicidade quase franciscana e, por isso mesmo, maravilhosa: enquanto a nação aguardava ansiosa a chegada de sua seleção campeã da Copa do Mundo, o PedidosYa enviou notificações falsas de entrega de encomenda para seus seis milhões de clientes.
Como não tinham comprado nada, os usuários acharam que era um erro do aplicativo. Mas, ao abrir a notificação, a pessoa acessava um rastreador que acompanhava o trajeto do troféu da Copa do Mundo desde o Oriente Médio até a Argentina.
Os argentinos, é claro, foram à loucura ao quadrado (já estavam nela por ter ganhado o torneio). Veja só: utilizando uma tecnologia incorporada ao dia a dia dos consumidores, PedidosYa conseguiu ser a marca mais viral do país, com investimento próximo do zero.
A inteligência artificial expande as possibilidades de captar insights como esse ao coletar quantidades monstruosas de dados e permitir, a partir deles, traçar perfis de público muito precisos e estabelecer conversas individuais.
No caso dos bots, por exemplo, a IA generativa permite que eles sejam programados com maior facilidade e conversem sobre mais coisas, com muito mais propriedade e assertividade. Ou seja, aumenta-se o escopo e a profundidade das conversas.
Além disso, a IA generativa permite que se programe também o tom da mensagem, pois o bot consegue captar o humor do usuário e responder com a abordagem mais apropriada, sem perder as características da marca. E tem ainda a vantagem da retroalimentação: o próprio bot avalia a percepção do usuário em relação ao atendimento, permitindo que se façam os ajustes necessários.
A transformação da jornada de consumo exige das equipes de marketing uma postura inovadora e disruptiva, porém cuidadosa. Mudanças muito bruscas na relação da marca com o público podem ter o efeito contrário do esperado e acabar afastando o consumidor.
Calibrar o ritmo e a amplitude da mudança é um dos maiores desafios que o marketing enfrenta hoje. Para vencê-lo, só com muita tecnologia e criatividade.