Como seres sociais e homo communicativus que somos, boa parte de nossa personalidade vem de nossas comunicações e interações com o mundo, o que aumenta exponencialmente quando usamos a melhor máquina de não esquecer e arquivar já inventada, vulgo internet. Por conta dela, há quase 30 anos deixamos rastros digitais que pouco a pouco revelam nossas personalidades, desejos e quem somos.

Esses rastros podem ser acumulados, lidos, estudados e utilizados para refletir quem somos, criando nosso legado digital e, no limite, variações e cópias de nossos pensamentos, que podem ser utilizados para um dia nos replicarem online. Seja alcançando a singularidade ou a possibilidade de nos tornarmos imortais através de nossas cópias digitais, o que já é explorado há algum tempo pela ficção científica e por alguns experimentos, o fato é que a coleção de nossas experiências e opiniões nos permitirá, algum dia, ultrapassar os limites biológicos da finitude. Quando começa a ficar cada vez mais claro que nossas opiniões e emoções podem ser agregadas à possibilidade de utilizar nossa voz e nossas expressões faciais em aplicações de deep facing, o futuro realmente parece ser o previsto em séries como Black Mirror.

Após o advento das redes sociais e da Web 2.0, em que expor-se digitalmente virou um mantra, tratar da disposição e exploração de nosso legado digital vai se tornando uma necessidade e um tema que temos que discutir.

Por conta disto temos, vez por outra, enfrentado o dilema de como proteger os direitos a este legado digital aos que já se foram. Como explorá-lo, quais seus limites e a quem cabe decidir sobre eles. Não é de hoje que as leis brasileiras já possibilitam que os nossos legados digitais, em textos, voz ou vídeo, sejam considerados como parte de nossa manifestação de pensamento, passíveis de proteção pelo direito autoral, se constituindo em ativos imateriais que passam a nossos herdeiros. Mas conforme avançamos em direção a uma realidade em que podemos ser reproduzidos digitalmente e há interesse econômico nisto, surgem novas iniciativas de exploração deste legado.

Nos idos dos anos 2000 e até o advento das redes sociais de 2008 em diante, o tema foi muito pouco explorado, já que pouco nos importávamos com os escritos e legados deixados quando partíamos. A partir do surgimento dos blogs e sua cultura de diários digitais, começamos a ver que estes pensamentos digitais traziam conforto aos que ficavam, já que podiam utilizar os blogs, painéis de redes sociais, álbuns de fotos e outros elementos digitais como fontes de recordação e homenagem à memória. Surgiam aí as primeiras questões sobre como tratar e a quem deixar o controle de nossas contas e serviços digitais, respeitando-se a lei sucessória. Ao longo da segunda década dos anos 2000 a maior parte das redes sociais e plataformas implementaram regras para comprovação da identidade dos herdeiros e a capacidade destes em manter, apagar, arquivar ou fazer cópias dos legados que foram deixados.

Com a evolução de nossa capacidade de produção de conteúdos e o uso massivo de fotos e vídeos, temos verdadeiras cápsulas do tempo que nos permitem estudar a personalidade de qualquer um que se exponha online. Ainda que o Snapchat tenha inovado ao permitir o formato de conteúdos que se apagam após certo tempo (olá Stories) e este tipo de conteúdo tenha permeado todas as redes sociais possíveis e imagináveis (Stories no Linkedin, quem diria), a quantidade absurda de conteúdo que cada um de nós produz e mantém online permite identificar nossa personalidade, gostos e opiniões de maneira muito completa. Extrapole isto em décadas e temos nossos Ids digitais prontos para nos substituir algum dia, utilizando nossos pensamentos, imagens e vídeos impressos no éter virtual.

Ainda que o tema possa parecer futurista, não estamos tão longe assim disto ocorrer, vide o emprego de personalidades falecidas em filmes e até em peças publicitárias, como acabamos de ver em nossa terra brasilis em junho. O tema também está na pauta do dia na greve dos roteiristas e atores em Hollywood, já que uma das exigências é que estes não sejam obrigados a ter seu material utilizado sem remuneração adicional para treinar robôs (os large language models ou LLMs que empoderam os chatbots). No caso dos atores, há o dissabor de se verem às voltas com cláusulas contratuais que permitem que suas imagens sejam capturadas até em 3D para serem utilizadas posteriormente em outras produções, com a cessão definitiva de direitos aos estúdios.

Motivado por estes acontecimentos, o Senador Rodrigo Cunha (Podemos/AL) apresentou o Projeto de Lei 3592/2023 tratando do uso de imagens e som de voz de quaisquer brasileiros em aplicações de inteligência artificial (IA), reforçando e expandindo o que já se encontra previsto no Código Civil ao se tratar dos direitos sucessórios dos falecidos. Originalmente, cabe aos titulares autorizar ou não o uso de sua imagem e voz em quaisquer aplicações comerciais ou em peças publicitárias, cabendo aos herdeiros o direito de dispor sobre tais ativos imateriais após a morte de seus protagonistas. De todo modo, o projeto de lei inova ao prever alguns cenários:

Consentimento – O uso dos direitos de imagem e som de voz depende do consentimento de seu titular, quando em vida, respeitando a lei autoral brasileira;

Suspensão do consentimento em vida – Acaso o projeto de lei seja aprovado, o retratado que consentir em vida sobre o uso de sua imagem e som de voz para uso em aplicações de IA pode ter seu uso revisto e suspenso por seus herdeiros. O projeto de lei não exige maiores justificativas para que este uso seja interrompido, mas atualmente a lei autoral brasileira já prevê que os herdeiros podem de fato suspender a utilização de ativos imateriais de seus antecedentes, nos casos em que considerem que há ofensa moral a suas imagens. O Direito Brasileiro adota o instituto dos direitos morais na lei autoral, permitindo que os herdeiros preservem o que considerem como a boa moral de seus ascendentes ou parentes, interrompendo usos que considerem indevidos. Em se aprovando o projeto de lei, a justificativa moral deixaria de ser necessária, bastando a negativa dos herdeiros para que aplicações de IA que utilizem de imagens e voz de algum protagonista já falecido sejam suspensas;

Manutenção da proibição no falecimento – Por outro lado, o projeto de lei inova ao prever que o titular dos direitos de imagem e som de voz que negar seu uso para aplicações de IA tenha sua proibição mantida independentemente da vontade de seus herdeiros, ou seja, ainda que a lei autoral e o código civil prevejam o direito dos herdeiros em dispor sobre o legado e direitos imateriais daqueles que já faleceram, o impedimento em vida ao uso de tais materiais seria definitivo e não poderia ser revisto posteriormente, em se tratando de aplicações de IA, criando uma barreira definitiva em caso de expressão de vontade negativa do retratado.

Avisos obrigatórios – Por fim, o projeto de lei acerta em exigir que o uso de pessoas e personagens construídos com IA sejam claramente informados em peças publicitárias. O Código de Ética do CONAR ainda não dispõe sobre o tema e talvez mediante esta provocação o faça, atualizando suas disposições sobre obras publicitárias no país.

Ainda que o projeto de lei ainda tenha que ser analisado no Senado e talvez na Câmara dos Deputados, além de ser avaliado sob o prisma legal para que eventuais conflitos com as leis existentes tenha que ser solucionado, como parece ser o caso, o exercício legislativo não deixa de ser válido, nos provocando a pensar em como lidar com o futuro que nos chega. Desde o advento da Internet há pouco mais de um quarto de século, temos que nos preocupar em como dispor de nosso legado digital, nos lembrando de prever como serão tratados nossos rastros digitais, imagens, vídeos e som de voz que ficarem após nossa breve passagem. Afinal, o dia em que Ash volta não está tão longe assim.

 

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