Estamos passando pela quarta eleição desde a reforma na Lei Eleitoral ocorrida em outubro de 2017, quando, depois de um forte lobby das plataformas provedoras de conteúdos, ficou “vedada a veiculação de qualquer tipo de propaganda eleitoral paga na internet, excetuado o impulsionamento de conteúdos, desde que identificado de forma inequívoca como tal e contratado exclusivamente por partidos, coligações e candidatos e seus representantes”.
Essa mesma alteração legal estabeleceu que a propaganda eleitoral na internet pode ser realizada por “qualquer pessoa natural, desde que não contrate impulsionamento de conteúdos”.
Dos quatro processos eleitorais pelos quais passamos a partir dali o mais problemático foi sem dúvida o de 2018, pois o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foi surpreendido e se viu incapaz de impedir os prejuízos que amargamos com aquelas eleições atropeladas pelas forças de direita, fortemente instrumentalizadas e financiadas, contando com o know-how de personagens como Steve Banon para fazer uso ilegal dos mecanismos das plataformas, veiculando volumosas campanhas desinformativas que violaram a legislação do país.
De lá para cá o TSE veio editando normas e implementando ferramentas institucionais com o objetivo de fazer frente ao uso ilegal das plataformas para burlar a Lei Eleitoral, como memorandos de entendimento assinados com as empresas, sendo que os mais recentes foram firmados em agosto deste ano e têm validade até 31 de dezembro, podendo ser prorrogados, o que tem de alguma forma reduzido significativamente os danos, mas não tem sido suficiente para por fim ao contexto de abusos no qual estamos mergulhados.
Pelos acordos as empresas se comprometem a “adotar medidas céleres para conter as notícias falsas e a cooperar com o Tribunal no Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (CIEDDE), inaugurado em março deste ano para centralizar o trabalho de combate às mentiras propagadas pela internet durante o período eleitoral”.
O CIEDDE conta com a participação de representantes do TSE, ANATEL, MPF, MJSP e Polícia Federal, com vistas a organizar o fluxo de operações desses órgãos e garantir agilidade na comunicação e encaminhamento de denúncias a serem recebidas pelo Sistema de Alertas de Desinformação Eleitoral (SIADE), o que é fundamental num cenário tão desafiador como são as eleições envolvendo 5.650 municípios para prefeitos e vereadores, com mais de 500 mil candidatos.
Além disso, em fevereiro deste ano, o TSE editou novas regras para a propaganda na Internet, trazendo disposições sobre uso de inteligência artificial, deep fake, ampliando disposições relativas aos elementos que devem ser incluídos nos repositórios de anúncios a serem mantidos pelas plataformas e, muito importante, responsabilizando civil e administrativamente de forma solidária as plataformas, quando deixarem de promover a indisponibilização imediata de conteúdos e contas, nos casos de condutas, informações e atos antidemocráticos, divulgação ou compartilhamento de fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados, grave ameaça de violência ou incitação contra a integridade física de membros e servidores da justiça e ministério público eleitoral, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, discursos de ódio que promovam racismo, homofobia, ideologias nazistas, fascistas ou outros tipos de racismo ou discriminação, divulgação ou compartilhamento de conteúdo fabricado ou manipulado, parcial ou integralmente, por tecnologias digitais, incluindo inteligência artificial, em desacordo com as formas de rotulagem indicadas pela resolução.
Ou seja, o TSE, apesar das críticas, tanto das forças políticas de direita quanto da esquerda, das quais discordo absolutamente, com amparo da legislação em vigor, tanto da lei eleitoral quanto de outras, como disposições constitucionais que garantem a dignidade da pessoa humana, a soberania popular do voto, o direito a informação, os princípios da ordem econômica, entre outros que conformam o arcabouço legal brasileiro, usou de seu poder regulamentar para implementar um sistema robusto de proteção do nosso sistema democrático, buscando amplitude proporcional ao poder de influência das plataformas que atuam na Internet e o alto grau de complexidade e pouca transparência sobre as tecnologias utilizadas pelas empresas.
Entretanto, e para tornar ainda mais complexa nossa conjuntura, apesar da conquista que as plataformas obtiveram com o lobby que tem lhes rendido algumas dezenas de milhões de reais em ganhos, desde quando, em 2017, conseguiram emplacar na Lei Eleitoral a previsão de um verdadeiro sistema de oligopólio para a exploração comercial de propaganda eleitoral, agora o Google, que opera a plataforma do Youtube e o principal mecanismo de buscas no Brasil e no mundo, o TikTok e o X, hoje suspenso no Brasil, entre outras plataformas, decidiram não aceitar este tipo de propaganda.
A justificativa é que as obrigações advindas com a Resolução 23.732/2024 são muito pesadas; especialmente as relativas ao repositório de anúncios “para acompanhamento em tempo real do conteúdo, dos valores, dos responsáveis pelo pagamento e das características dos grupos populacionais que compõem a audiência (perfilamento) da publicidade contratada”, devendo também disponibilizar ferramenta de consulta acessível e de fácil manejo, que permita buscas avançadas dos dados, entre outros requisitos, o que se revela como instrumento fundamental para a formação do senso crítico do eleitor, diante dos conteúdos que lhes são exibidos.
Importante ainda destacar que, de acordo com a nova resolução, caracteriza “conteúdo político-eleitoral, independente da classificação feita pela plataforma, aquele que versar sobre eleições, partidos políticos, federações e coligações, cargos eletivos, pessoas detentoras de cargos eletivos, pessoas candidatas, propostas de governo, projetos de lei, exercício do direito ao voto e de outros direitos políticos ou matérias relacionadas ao processo eleitoral”.
Sendo assim, a decisão das plataformas em não aderir ao sistema tem tido efeitos extremamente desorganizadores para o cenário político, na medida em que, independentemente de aderirem ou não ao sistema oficial de propaganda eleitoral, o fato é que na prática têm promovido vastamente conteúdos de natureza política, escapando das regras estabelecidas pelo TSE.
Essa afirmação se confirma quando acessamos a página inicial do YouTube, por exemplo, ou vídeos do TikTok, e tomamos conhecimento de conteúdos que facilmente se enquadram na classificação do TSE como político-eleitoral, mas que estão escapando do controle do sistema implantado.
Quem tem se valido fartamente destas brechas é o candidato a prefeito de São Paulo Pablo Marçal, que usa das eleições para ampliar ainda mais sua fortuna, veiculando vídeo, como vem sendo noticiado, onde ele diz:
“Quero te fazer uma pergunta: você conhece alguém que quer ser vereador e é candidato, que não seja de esquerda? De esquerda nem precisa avisar. Se essa pessoa é do bem e quer um vídeo meu para ajudar a impulsionar a campanha dela, você vai mandar esse vídeo e falar ‘olha que oportunidade’. Essa pessoa vai fazer um Pix de R$ 5 mil para minha campanha, como doação”, disse Marçal.
Pesquisa realizada pelo Netlab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), identificou 108 anúncios pagos promovendo o candidato à prefeitura de São Paulo pelo PRTB, Pablo Marçal, que circularam no TikTok no período entre 1° de maio e 16 de setembro, gerando mais de 1 milhão de visualizações.
Diante desse cenário não é difícil compreender como uma figura com o perfil deste candidato, com reconhecida habilidade no uso das redes sociais e nenhum compromisso com a ética ou a importância do debate político, e sem nenhum minuto de tempo de propaganda na televisão, pode estar alcançando destaque em uma das mais importantes cidades do Brasil e cujo resultado do pleito terá importância determinante para as eleições de 2026.
Foi louvável a recente manifestação da ministra Cármen Lúcia, hoje presidente do TSE, afirmando que “política não é violência, é a superação da violência”. Entretanto, precisamos mais para fazer frente ao poder de influência das plataformas e de suas resistências em se submeterem às leis do país, desrespeitando nossa soberania.
O exemplo mais recente do embate entre o X e o STF nos revelou a necessidade de firmeza e rapidez para confrontar a violência das práticas comerciais das plataformas, sempre dispostas a fazer valer seu poder econômico e de influência para ver prevalecer seus interesses privados em detrimento do interesse público, como estamos assistindo mais uma vez nessas eleições.
Mais uma vez o desafio está posto: a regulação tem limites e o exercício da soberania nacional depende de supervisão constante e força institucional para sustentar nossa democracia.