A influência de diretivas da União Europeia (UE) na legislação brasileira tem sido bastante perceptível nos últimos anos. O General Data Protection Regulation (GDPR), de 2016, que serviu de forte inspiração à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei n? 13709/2018), talvez seja o exemplo mais emblemático e conhecido nesse sentido porque afeta de modo transversal a todas as indústrias. Sem dúvidas, o setor de telecomunicações, a exemplo de tantos outros, teve de se adequar – e está em processo constante de adequação – às obrigações impostas pela LGPD.
Outro exemplo é a Audiovisual Media Services Directive (AVMS), de 2010, que tanto inspirou a Lei da Comunicação Audiovisual de Acesso Condicionado (Lei do SeAC – Lei n? 12485/2011), impactando os setores de telecom e audiovisual brasileiros, e trazendo nova roupagem para a TV paga no Brasil, sobretudo no que respeita às cotas de conteúdo nacional. No âmbito das cotas de conteúdo nacional, tem-se que a AVMS traz obrigações claras sobre a obrigatoriedade dessas cotas também no streaming. Ainda que a Lei do SeAC não preveja essa obrigação, há Projetos de Lei (PL) no Congresso Nacional, tais como o PL nº 8889/2017, e o PL nº 2331/2022, que tratam sobre a oferta de serviços de vídeo sob demanda no mercado brasileiro, e claramente se inspiram na regulamentação europeia ao trazerem também para o streaming a obrigação da implementação de cotas de conteúdo nacional.
Ainda na esfera do Congresso Nacional, podemos citar, por exemplo, as discussões realizadas no âmbito do PL n° 2338/2023, que trata sobre o uso da Inteligência Artificial, e que notadamente reflete o debate já enfrentado na recente Harmonised Rules on Artificial Intelligence (Regulation UE 2024/1689), publicada em julho de 2024. Diante desse cenário, no que se refere à inteligência artificial, é válido que as empresas brasileiras observem a produção normativa europeia de modo a antecipar iniciativas similares no país, permitindo, assim, o planejamento mais estruturado e informado de eventuais adequações em suas operações. O setor de telecomunicações tampouco escapará dos efeitos da futura lei, ainda mais em razão dos impactos que a inteligência artificial já traz ao setor. Conforme antecipado pelo senador Eduardo Gomes, relator do referido PL, durante participação no 50º Painel Telebrasil, em Brasília, o substitutivo ao atual PL vai fortalecer o papel das agências setoriais, inclusive a Anatel, na definição das regras de uso da inteligência artificial em cada vertical da economia.
A exemplo das regulamentações citadas, outra temática que vem ganhando destaque é a promoção dos valores ESG (Environmental, Social and Governance, do inglês) no ambiente corporativo. E, também nesse campo, o setor de telecomunicações brasileiro será impactado pelas discussões do bloco europeu.
No dia 24 de abril de 2024, a UE aprovou a Diretiva de Due Diligence em Sustentabilidade Corporativa (CS3D), que entrou em vigor em 25 de julho de 2024, prevendo uma série de iniciativas que envolvem a inclusão de indicadores ESG nas políticas de Due Diligence (DD) das empresas, independente de setor da economia. Para o cumprimento da CS3D, os Estados membros deverão publicar leis e outros regulamentos necessários até o dia 26 de julho de 2026. A partir disso, a aplicação da CS3D para as empresas ocorrerá em fases, que variam conforme o número de funcionários e seu volume de negócios, com início em 26 de julho de 2027 e término no dia 26 de julho de 2029.
Na prática, a CS3D determina, entre outras medidas, a realização de DD tangenciando aspectos ambientais e de direitos humanos, para a identificação e avaliação dos impactos adversos reais e potenciais decorrentes das operações das empresas. Além disso, a CS3D prevê que as empresas promovam ações que visem à resolução, minimização e correção dos impactos adversos reais decorrentes de suas operações, bem como à adoção de plano para compatibilizar seus modelos de negócios com a transição para uma economia sustentável, observando o Acordo de Paris.
A DD prevista na CS3D, portanto, vai além de uma avaliação reputacional. Trata-se de análise da atividade da empresa e de sua cadeia de valor, impactando, assim, não só diretamente as grandes empresas, mas também demandando que os pequenos negócios se adaptem aos indicadores da CS3D.
E o que o setor de telecomunicações brasileiro tem a ver com isso? Muito!
A CS3D afeta as empresas dentro e fora da UE diretamente. E, embora a CS3D se aplique àquelas empresas cujo volume de negócios líquido gerado na UE seja ?€ 450 milhões, suas obrigações alcançam as controladas dessas empresas em todo mundo, bem como aos parceiros comerciais dessas controladas – contemplando contratantes e subcontratantes.
Observa-se, portanto, que a CS3D possui relevante impacto nas operações e políticas das empresas de diversos setores, com reflexos em escala global, alcançando também o mercado de telecom. Inclusive, sabe-se, por comunicações institucionais que empresas europeias que possuem controladas no Brasil já realizam Due Diligences em matéria de direitos humanos. O documento “Telefónica’s Human Rights and Environmental Due Diligence Process” disponibilizado no site da Telefónica, da Espanha, por exemplo, inclusive faz referência ao PL brasileiro n° 572/2022, em tramitação na Câmara dos Deputados, que dispõe sobre a criação da lei marco nacional sobre Direitos Humanos e Empresas, estabelecendo diretrizes para a promoção de políticas públicas sobre o tema em nosso país. O documento também se refere ao Decreto n° 9.571, de 2018, que instituiu as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos. Note-se que o referido decreto foi revogado pelo Decreto nº 11.772, de 2023, que, por sua vez, criou o Grupo de Trabalho Interministerial para elaboração de proposta da Política Nacional de Direitos Humanos e Empresas.
Portanto, percebe-se que, ainda que de modo mais esparso, há em âmbito nacional esforços para a criação de normas em prol da observância dos valores ESG, inclusive acerca de direitos humanos, no ambiente corporativo. Com efeito, o PL n° 572/2022 estipula medidas semelhantes às previstas na CS3D, refletindo a intenção do legislador brasileiro em incluir a promoção desses valores no ambiente corporativo. Dentre as sanções previstas, o referido PL sinaliza: perda de bens, direitos e valores que possam ter sido obtidos a partir das violações produzidas; proibição de recebimento de incentivos e contratações com o Poder Público até que se realize a devida adequação; e pagamento de multa.
Nesse contexto, outro exemplo é o Projeto de Lei n? 2203/2023, em tramitação no Senado, que prevê a proibição de transações comerciais de empresas brasileiras com empresas estrangeiras que exploram trabalho escravo ou análogo à escravidão. Nesse tema, cabe ressaltar que o Ministério do Trabalho e Emprego, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e o Ministério da Igualdade Racial publicaram a Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR n? 18, de 13 de setembro de 2024, que cria um Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à escravidão, bem como medidas de prevenção, repressão e monitoramento dessas práticas. Na lista publicada pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego já há atualmente 722 empresas. Felizmente, nenhuma do setor de telecomunicações, ou mesmo TMT.
A tendência é de que haja medidas mais objetivas com vistas à observância dos valores ESG em toda a cadeia de valor das empresas, inclusive relacionados a direitos humanos. Parece-nos que, mais uma vez, trata-se de inspiração do legislador nacional frente ao que já existe na regulamentação da UE.
No setor das telecomunicações, percebe-se movimento cada vez mais constante da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) para ações de conversão de multa em obrigações de fazer direcionadas ao provimento de conectividade em áreas mais necessitadas e/ou de capacitação de grupos específicos de cidadãos, sempre em prol da promoção dos valores ESG. Nessa linha, recentemente, a ANATEL converteu multa de quase R$ 4 milhões aplicada à Claro para um projeto de capacitação de mulheres em situação de vulnerabilidade e risco social. O projeto envolve direitos humanos e letramento digital, baseado em projeto preliminar apresentado pela empresa com inspiração em iniciativa similar já realizada em outro país.
Recentemente, a TIM foi considerada a segunda operadora de telecomunicações mais inclusiva e diversa do mundo, segundo o FTSE Russell D&I Index 2024 – índice que é uma das principais ferramentas globais utilizada por investidores para identificar as empresas mais avançadas nesses temas. A empresa já havia ganhado o Glomo Award da GSMA na categoria Diversity in Tech Award, em 2021, graças, entre outras iniciativas, ao Teclado Consciente TIM, aplicativo gratuito para smartphones que identifica uso de termos e palavras preconceituosas, explicando origem e sugerindo substituições para promoção da igualdade, diversidade e direitos humanos no setor de tecnologia.
Em paralelo, na Consulta Pública nº 53/2024 em andamento até o dia 09 de dezembro de 2024, que trata da proposta de reavaliação do Regulamento de Aplicação de Sanções Administrativas da Anatel (RASA), há previsão de alteração do art. 16 do RASA, determinando que “as obrigações de fazer devem, preferencialmente, privilegiar projetos que atendam às necessidades estruturantes previstas em Plano de Conectividade Significativa e Sustentabilidade Socioambiental (PCS) ou em Plano Estrutural de Redes de Telecomunicações (PERT) aprovados pela Anatel”.
Nesse contexto, tem-se que os aspectos ambientais, sociais e de governança farão cada vez mais parte da agenda das empresas do setor, grandes ou pequenas, cada qual imprimindo sua trilha específica de valores ESG. A característica comum, além da genuína preocupação percebida em boa parte das empresas, será a de que todas passarão a ser efetivamente obrigadas por lei a implementar tais valores.
Dessa forma, recomenda-se que, ainda que não haja lei específica no Brasil sobre a observância dos critérios ESG, inclusive quanto aos aspectos de direitos humanos, as empresas em geral, inclusive de telecom, possam se inspirar na CS3D da UE e melhores práticas voltadas à garantia dos direitos humanos, sustentabilidade e governança, e comecem a criar – e/ou a sofisticar, conforme o caso – suas jornadas ESG.
A exigência de implementação de práticas ESG pelas empresas não é apenas um modismo, mas parte de um processo de responsabilidade social que tende a crescer e ser exigido pela sociedade, e não apenas reguladores.
*Com a colaboração de Giovanna Soares, estagiária de telecom do Souto Correa Advogados