Ouso afirmar que um dos setores que mais se reinventou ao longo da última década foi o das operadoras de telecomunicações.

O ritmo e o alcance das transformações é inacreditável. Além das inúmeras fusões, aquisições e movimentos de reposicionamento estratégico, houve a consolidação do 4G, a implementação e a expansão acelerada do 5G, a massificação da ultra banda-larga e a explosão das ISPs, a chegada da internet das coisas, cidades inteligentes e muito mais.

As margens e a saúde financeira do setor parecem haver entrado em um bom momento, com as empresas líderes reportando resultados robustos trimestre após trimestre, de forma progressiva e considerada bastante positiva pelos analistas de mercado.

Algumas destas operadoras conseguiram bastante sucesso com a expansão de seu portfólio de soluções, para além da mera conectividade ou “pipe” de dados: empresas do segmento hoje oferecem um completo conjunto de ofertas alavancadas em serviços financeiros, educação, saúde e muitos outros produtos que ajudam a monetizar e a expandir a base de clientes para além de uma visão mais utilitária e funcional, que há décadas assolava a percepção externa sobre as empresas do ramo.

 Transformação digital, que dez anos atrás era um sonho inatingível, hoje é uma realidade. Dezenas de milhões de usuários mensais de aplicativos, inteligências artificiais de voz e texto, bots, e-commerces e canais digitais providos pelas operadoras. A simplificação de sistemas após quase duas décadas de integrações entre empresas é um fator relevante de melhoria, ainda em curso. Robotização, automação e eliminação contínua de processos ineficientes ajudam a melhorar a experiência dos clientes e a incrementar a eficiência financeira.

Poderia aqui seguir listando grandes conquistas e mudanças adicionais ocorridas ao longo deste tempo: a força das marcas destas empresas perante o consumidor final; a progressiva mas contínua universalização do acesso à internet, fundamental para o êxito de nosso país; os programas de inclusão para a educação; as práticas ESG adotadas pelas empresas e que servem de poderosa referência para outros setores da economia; as soluções cada vez mais diversificadas e sofisticadas para o segmento B2B (empresas); e muito, mas muito mais.

Entretanto, após uma viagem recente à cidade de Boston (EUA) para falar e estudar um pouco mais sobre Inteligência Artificial com um grupo seleto de líderes convidados para estar no Harvard Club e MIT, uma reflexão diferente foi a que me marcou: por que, globalmente, se fala tão pouco sobre cases de operadoras de telecomunicações quando pensamos em soluções disruptivas e de alto impacto usando IA, Web 3 ou quaisquer uma das novas e excitantes possibilidades tecnológicas que estão na iminência de transformar a sociedade de uma maneira jamais vista?

Uma das considerações mais frequentes que havia em fóruns e encontros executivos com pessoas deste mercado, no passado recente, era sobre como era “injusto” que as big techs houvessem se apropriado ao longo do tempo dos expressivos crescimentos de margens e negócios durante os primeiros ciclos do processo de transformação digital, enquanto às operadoras coube arcar com os massivos desafios de prover conectividade em escala para que estas empresas pudessem existir, mesmo com todas as restrições e arcabouços regulatórios que sobre elas incorrem (e de forma desproporcional, quando comparadas às empresas de tecnologia digital). E que às operadoras coube arcar com os massivos investimentos em CAPEX para dar vazão à voraz e infinita demanda por dados e conectividade (e que trouxe consigo as naturais reclamações dos usuários oriundas deste tipo de serviço e seus impactos na imagem do segmento), enquanto as big techs souberam capitalizar a preferência dos consumidores e monetizar de forma brilhante o surgimento de toda esta nova indústria.

O conhecido case do WhatsApp, que disruptou fortemente toda a indústria e conectou consumidores com uma solução substituta cross-carrier considerada mais útil, amigável e funcional por eles (hoje em dia, sou um dos raros casos que conheço de pessoas que procura fazer ligações primeiro pelos canais de voz tradicionais, ao invés de ligar pelo “zap”) não pode ser deixado de lado. Às operadoras, ficou a oportunidade de prover dados para a rede social funcionar; e todo o engajamento, jornada, preferência dos usuários, dados e oportunidades de negócio trazidos com isto.

Ora, temo que mais uma vez as operadoras estejam perdendo a chance de se reposicionar estrategicamente como relevantes players do acelerado processo de transformação digital junto aos clientes e à sociedade civil, e fiquem com o papel de serem vistas como empresas de utilities que atuam somente como enablers destas mudanças, perdendo oportunidades de capitalização únicas, em tempos de IA generativa e afins.

Pensemos por exemplo no case da NVIDIA. Ainda que seja uma empresa que tem atuação muito diferente daquela de uma prestadora de serviços regulados, não deixa de me saltar à vista que grande parte de seu recente crescimento e valorização mercadológica decorra do fato de ser a provedora mais bem-posicionada de um sem-fim de soluções e produtos (processadores, placas de vídeo etc.) que possibilitará a todas as demais organizações do planeta escalar suas próprias aplicações em IA, RA, RV, computação quântica e afins. Uma das empresas fundamentais para se capturar os ganhos da nova onda da inevitável transformação digital. E o mercado de capitais rapidamente reconheceu – e valorizou – isto. E há que se reconhecer o mérito da própria empresa em entender e se antecipar a estas tendências.

Da mesma maneira, e com outro papel, são as operadoras elementos constituintes fundamentais da cadeia de valor das empresas da nova era. Mas, até o momento, todos os belos cases aplicando inteligência artificial que vi nesta indústria são extremamente autocentrados, voltados para melhorar (com razão) os níveis de serviço no atendimento ao cliente, reduzir custos e aumentar eficiências financeiras, diminuir fraudes e outros do tipo.

Há fantásticas histórias corporativas de êxito na aplicação de inteligência artificial e dados (incluindo letramento digital dos colaboradores) por operadoras, que permeiam os eventos de mercado que discorrem sobre o tema da moda. Mas não há qualquer case realmente que eu haja visto que traga consigo o frescor de uma transformação maior, que esteja correlacionado às reais dores das pessoas, ou mesmo que envolva soluções aplicadas para grandes dilemas como tragédias ambientais, questões climáticas ou hiperpersonalização, por exemplo.

Esse foco interno é essencial e muito relevante. Mas possui alcance restrito. Pouco vejo discussões setoriais ou mesmo nas empresas líderes do segmento, em todo o planeta, sobre como adotar IA em formatos e escalas proporcionais à relevância dos serviços que as operadoras prestam para cada um de nós.

Uma enorme oportunidade latente, em um momento no qual as práticas das big techs finalmente começam a ser questionadas pela sociedade civil, e haverá uma lacuna de confiabilidade e experiência a ser preenchida.

Será que dessa vez o setor conseguirá aproveitar mais esta chance?