No último dia 7 de janeiro, Mark Zuckerberg – dono da Meta, que opera as plataformas Facebook, Messenger, WhatsApp, Instagram e Threads, alcançando mais de 130 milhões de usuários no Brasil, anunciou duas mudanças radicais nas diretrizes adotadas para a moderação dos conteúdos que trafegam em seus sistemas, capazes de trazer consequências graves com estímulo à desinformação, discursos de ódio e desrespeitos a direitos humanos.
As principais mudanças anunciadas foram o fim das parcerias com empresas de jornalismo para a verificação de fatos e o foco dos seus mecanismos verificadores de conteúdos, que passarão a atuar apenas diante de violações de alta gravidade, sendo que nos casos considerados pela Meta de menor gravidade a moderação do conteúdo dependerá de denúncias e interferências feitas pelos usuários das plataformas.
Para piorar o cenário e pondo em prática as novas diretrizes, na versão publicada pela Meta da tradução de sua política de transparência no mesmo dia do anúncio feito por Zuckerberg, apesar de afirmar que não permite condutas de ódio no Facebook, no Instagram e no Threads, declara que “alegações de doença mental ou anormalidade quando baseadas em gênero ou orientação sexual, considerando discursos políticos e religiosos sobre transgenerismo e homossexualidade” estão permitidas.
Tem ainda a audácia de informar que define como conduta de ódio o ataque direto a pessoas “e não a conceitos e instituições, baseado no que chamamos de características protegidas: raça, etnia, nacionalidade, deficiência, religião, casta, orientação sexual, sexo, identidade de gênero e doença grave” e segue dizendo que: “às vezes, as pessoas usam linguagem específica de sexo ou gênero para discutir o acesso a espaços geralmente restritos por essas categorias, como banheiros, escolas, cargos militares, policiais ou de ensino, além de grupos de saúde ou apoio. Em outros casos, solicitam exclusão ou recorrem a linguagem ofensiva ao abordar tópicos políticos ou religiosos, como direitos de pessoas transgênero, imigração ou homossexualidade. Também é comum que xingamentos a um gênero ocorram no contexto de separações amorosas”, assumindo que “nossas políticas foram criadas para dar espaço a esses tipos de discurso”.
Para além do texto confuso e do vasto campo de subjetividade que se abre com as práticas a que se propõe, a política adotada pela empresa afronta indiscutivelmente padrões de dignidade da pessoa humana, de segurança e de democracia estabelecidos por várias de nossas leis, como a Constituição Federal, o Código do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Eleitoral, diversos dispositivos do Código Penal entre outras.
Importante destacar que a manifestação de Zuckerberg desvenda o caráter político da atuação da sua empresa, que não está comprometida apenas com o lucro; atua, assim como outras empresas estadunidenses de tecnologia, como braço do neoliberalismo e suporte dos Estados Unidos nas disputas no cenário da geopolítica.
O anúncio da Meta feito por Zuckerberg por vídeo onde ele declara expressamente que está alinhado com o Governo Trump, deixa evidente sua resistência à dinâmica global de regulação estatal das plataformas que exploram serviços na Internet e das novas tecnologias, apoiada por documento originado das discussões recentes no G20, na medida em que, segundo ele, estas iniciativas significam censura e violações à liberdade de expressão, chegando a criticar a atuação de tribunais da América Latina, desrespeitando a jurisdição e a soberania dos países.
Diante da gravidade do teor do discurso de Zuckerberg, o Governo brasileiro agiu rápido e de forma proporcional, por intermédio da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia – órgão vinculado à Advocacia Geral da União (AGU) que, depois de reunião convocada pelo Presidente Lula com diversos ministros, ainda no dia 10 de janeiro, enviou a Meta notificação extrajudicial, interpelando a empresa a respeito da aplicação dessas novas diretrizes de moderação de conteúdo no Brasil, dando o prazo de 72 horas para a resposta.
A resposta da Meta chegou no prazo e a AGU divulgou Nota sobre ela no dia 14 de janeiro e concordo que, diferentemente do que muitos têm interpretado, a Meta, de forma indireta, reafirmou sua intenção de confrontar as leis brasileiras, sob a falsa justificativa de defesa da liberdade de expressão.
É surpreendente a informação trazida na resposta de que “as mudanças anunciadas pela empresa relativas à Política de Conduta de Ódio já foram implementadas no Brasil com o “objetivo de garantir maior espaço para a liberdade de expressão (…) e permitir um debate mais amplo e conversa sobre temas que são parte de discussões em voga na sociedade”.
E sobre o fim de contrato com empresas de fact checking a resposta informa que, por enquanto, esta medida está restrita aos Estados Unidos.
Portanto, correta a avaliação da Nota da AGU quando declara o seguinte:
“Alguns aspectos constantes no documento da Meta causam grave preocupação na AGU e em órgãos do governo federal. Especialmente a confirmação da alteração e adoção, no Brasil, da Política de Conduta de Ódio que, à toda evidência, pode representar terreno fértil para violação da legislação e de preceitos constitucionais que protegem direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros.
As informações prestadas pela Meta também contrariam afirmações realizadas pela empresa em recentes manifestações proferidas no curso da discussão sobre o Marco Civil da Internet, no âmbito de processos em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Em tais manifestações, representantes da empresa asseguraram que as então políticas de governança de conteúdo eram suficientes para a proteção dos direitos fundamentais dos usuários”.
A preocupação se justifica e fatos recentes corroboram esta preocupação. É o caso da enxurrada de posts por usuários da ultradireita comemorando o ataque a tiros no assentamento Olga Benário do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra em Tremembé no dia 13 de janeiro, que culminou com duas mortes e mais outros feridos, sem nenhuma interferência da Meta diante da incitação ao crime de homicídio, muito provavelmente com base na nova política sobre conduta de ódio que não considera os ataques a conceitos ou instituições como desrespeito aos termos de sua política contra conduta de ódio.
Ou seja, a Meta já está aplicando a nova política, em inadmissível desrespeito às leis brasileiras, o que motivou a AGU, como informado na Nota divulgada no dia 14 de janeiro a, junto com os Ministérios da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) e Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom/PR), realizar na semana do dia 20 de janeiro audiência pública para “discutir os efeitos da nova política implementada pela Meta, o dever de cuidado das plataformas digitais, os riscos da substituição do Programa de Verificação de Fatos no exterior e as medidas a serem adotadas com o objetivo de assegurar o cumprimento da legislação nacional e a proteção de direitos”, com a participação de “órgãos governamentais e entidades da sociedade civil que lidam com o tema das redes sociais. Também serão convidados especialistas, acadêmicos e representantes das agências de checagem de fatos”.
Espero que o Comitê Gestor da Internet no Brasil – CGI.br seja envolvido nas discussões que o Governo vier a adotar para enfrentar o poder econômico e político inédito que as plataformas da Meta desempenham no Brasil, assim como outras plataformas, como Youtube, do Google, o X de Elon Musk entre outras, dando concretude à governança multissetorial, como está expresso no art. 24, do Marco Civil da Internet. Além disso, é importante que o Governo reconheça o papel histórico que o CGI.br, junto com o NIC.br – seu braço executivo, tem tido para o desenvolvimento da governança da Internet no Brasil.
Estas últimas iniciativas do Governo são demonstrações importantes de compromisso com a segurança, com a democracia e com a defesa de nossa soberania, que devem ser aplaudidas. Esperamos que este seja um primeiro passo no sentido de se adotarem medidas institucionais urgentes, voltadas para reduzir a enorme dependência dos cidadãos brasileiros das aplicações da Meta que, ao longo dos últimos anos, têm desempenhado papel determinante para o crescimento da desinformação, proliferação de discursos de ódio nas redes, desorganização dos processos políticos e prejuízos de ordem social e psicológica para crianças e adolescentes e às políticas de saúde pública, como assistimos desde as eleições de 2018, de 2022 e no período da COVID 19, quando veiculou em larga escala conteúdos desincentivando a vacina.