|Atualizado em 28 de setembro de 2023, às 7h52, com direito de resposta do Brasil Paralelo| No último dia 2 de julho, a Folha de São Paulo publicou matéria informando que o Governo Lula, descrente da aprovação do PL 2630/2020, que propõe a Lei de Liberdade,  Responsabilidade e Transparência na Internet, conhecido como PL das fake news, estaria investindo “em um plano B” com o objetivo de definir “regras para a campanha eleitoral digital, para que elas possam valer nas eleições municipais de 2024”. 

Ações do Governo nessa direção, e com urgência, fazem todo o sentido; até porque o foco do PL 2630 é bem mais amplo e poderá não ter eficácia para impedir os efeitos deletérios que resultaram da reforma na Lei Eleitoral ocorrida, não a toa, em 2017, na esteira da ascensão das forças de direita, na presidência de Michel Temer.

Apesar de o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ter atuado de forma bem mais incisiva quanto às atividades ilícitas relacionadas às campanhas na rede em 2022, o fato é que a reforma da Lei Eleitoral ocorrida em 2017, além de ter empoderado de forma excessiva as plataformas, colocando-as como protagonistas, como as principais mediadoras nos espaços públicos para os debates políticos, deixou de estabelecer outras regras para mitigar os potenciais efeitos negativos das postagens de conteúdos ilegais.

Foi o art. 57-C, introduzido na Lei 9.504/1997, que vetou “a veiculação de qualquer tipo de propaganda eleitoral paga na internet, excetuado o impulsionamento de conteúdos, desde que identificado de forma inequívoca como tal e contratado exclusivamente por partidos, coligações e candidatos e seus representantes” (redação de acordo com a Lei 13.488/2017).

Vejam, então, que a reforma de 2017 proibiu a propaganda paga na Internet, estabelecendo a exceção para o “impulsionamento de conteúdos”, incorporando o termo que revela como foi bem sucedido o lobby das plataformas, além de ter equiparado a contratação de “priorização de conteúdos resultantes de aplicações de busca na internet” ao impulsionamento, atribuindo às aplicações da Meta, da Google e Twitter, principalmente, vantagens imensas e inadequadas ao poder de mercado e de influência destas empresas para que passassem a operar largamente no campo político.

Por outro lado, uma das lacunas que não poderia ter sido esquecida para garantir mais equilíbrio e higidez ao processo eleitoral, e que precisa ser preenchida urgentemente, é que a lei não considera como propaganda em favor de determinado candidato os conteúdos altamente financiados, recobertos por uma roupagem de jornalismo, mas com fortes e parciais mensagens políticas, que não tenham sido postados diretamente pelas candidaturas ou partidos. Consequentemente, a lei deixa de definir regras específicas e inequívocas para impulsionamentos de conteúdos com teor político promovidos por pessoas jurídicas em geral, revestidos pela falsa roupagem do jornalismo.

A Lei Eleitoral é muito mais clara nesse sentido quando se trata de radiodifusão. Todavia, na Internet temos um campo de indefinição inapropriado e que tem causado muitos problemas, como nos mostraram os processos eleitorais conturbados de 2018 e 2022.

Os impulsionamentos volumosos de canais, que se anunciam como jornalísticos, como o da Brasil Paralelo, ocorridos nas eleições passadas, assim como as práticas de recomendação dos conteúdos da Jovem Pan pelo YouTube, que tiveram um peso bastante importante para a mobilização voltada para a tentativa de golpe de 8 de janeiro deste ano, por exemplo, deveriam estar submetidos a regras claras, de modo a garantir equilíbrio ao processo eleitoral. Relatórios da Google, porém, mostram que o Brasil Paralelo, canal declaradamente bolsonarista e de extrema direita, liderou de longe o ranking dos maiores impulsionadores de conteúdos políticos e tudo isso passou ao largo do controle do TSE.

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Estamos falando de mais de R$ 1,8 milhão investido pelo Brasil Paralelo só com o Google, o que justifica a pergunta: de onde vem o recurso para toda essa produção e propaganda derramada aos borbotões na Internet que, como revelam estudos autorizados, fazem parte do ecossistema informacional, como reconheceu o Ministro Benedito Gonçalves, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao conceder liminar à Coligação Brasil Esperança na ação ajuizada para denunciar os conteúdos do canal, confirmada pelo Pleno da Corte Eleitoral, servindo de estoque fornecedor de material para ser decupado e disparado massivamente por meio das aplicações de mensageria como WhatsApp e Telegram?

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É certo que a Resolução do TSE 23.714, de 20 de outubro de 2022, editada no meio do caos de campanhas ilegais, tratando sobre o enfrentamento à desinformação que atinja a integridade do processo eleitoral, de alguma forma buscou dar resposta ao problema decorrente do fato de que a Lei Eleitoral não regulou de forma suficientemente abrangente a propaganda política. Mas, infelizmente, a Resolução teve eficácia reduzida. 

O teor da decisão proferida pelo Ministro Benedito Gonçalves do TSE ilustra bem os efeitos da ausência de regras com definições claras sobre o que se considera propaganda política na Internet, como se pode depreender de trecho que transcrevo aqui:

15. Não se trata, no ponto, de jornais que legitimamente ostentam preferências políticas e que naturalmente se inclinam, em sua leitura crítica dos fatos, a uma determinada corrente. O fenômeno referido tem estreita relação com a produção de notícias falsas orientadas a apresentar uma visão ideológica como se fosse verdade factual. O empreendimento comercial, nesses casos, fica em segundo plano, tornando-se prioritária a possibilidade de influenciar nas escolhas políticas e eleitorais dos cidadãos, inclusive por estímulo à radicalização. 

16. Na hipótese, não se discute, em abstrato, a possibilidade ou não de serem mantidos sites, canais e perfis que pretendam conferir aparência jornalística a conteúdos ideologicamente orientados. O que se examina, concretamente, é a necessidade de inibir ou mitigar os efeitos anti-isonômicos da movimentação de recursos por quatro provedores de conteúdo, mantidos por pessoas jurídicas, que assumiram comportamento simbiótico em relação à campanha midiática do primeiro investigado. 

17. Destaco, nesse sentido, que essas empresas: a) possuem canais no YouTube que contam com milhões de inscritos e são fortemente monetizados; b) já figuraram em ações judiciais ou inquéritos (STF e TSE) destinados a apurar a disseminação de fake news com impacto no processo eleitoral; c) funcionam como produtoras e/ou promotoras de conteúdo consistentemente favorável ao primeiro investigado, inclusive por meio notícias falsas ou gravemente descontextualizadas, que, ao ser distribuído em outras redes sociais, de forma massiva, contribuíram para o desvirtuamento do debate político em prejuízo do candidato da coligação autora, conforme demonstram picos de busca do Google; d) reiteradamente utilizam as decisões do TSE determinando a derrubada de conteúdos como combustível para estimular a desconfiança em relação ao sistema de votação; e) recebem recursos financeiros de assinaturas dos canais, de publicidade paga e de investimentos oriundos de pessoas que compartilham a ideologia dos seus proprietários, retroalimentando a estrutura empregada na produção e consumo de conteúdos inverídicos; f) aplicam vultosos recursos em impulsionamento nas redes, potencializando o alcance e a distribuição de notícias e documentários que essencialmente reverberam o discurso eleitoral do candidato que apoiam, influindo diretamente no pleito, em razão do momento eleitoral. 

18. Diante desses elementos é pertinente determinar, até que se realize o segundo turno, a desmonetização dos citados canais, bem como a vedação do impulsionamento de conteúdos político-eleitorais, especialmente envolvendo os candidatos disputantes, seus partidos e apoiadores. 

19. Também até o segundo turno, deve-se suspender a exibição do documentário sobre o ataque sofrido pelo primeiro representado em 2018, cuja estreia se encontrava marcada para seis dias antes da eleição. A semana de adiamento não caracteriza censura. Apenas evita que tema reiteradamente explorado pelo candidato em sua campanha receba exponencial alcance, sob a roupagem de documentário que foi objeto de estratégia publicitária custeada com substanciais recursos de pessoa jurídica. 

20. Tutela inibitória antecipada parcialmente deferida, para determinar que, até 31/10/2022, seja suspensa a monetização dos quatro canais mantidos por pessoas jurídicas referidos na inicial e o impulsionamento de conteúdos político-eleitorais por essas empresas, bem como a exibição do documentário indicado, sob pena de multa. 

Esta decisão terminou por ser confirmada por 5 votos a 3, sendo que tanto o Ministro Alexandre de Moraes, quanto a Ministra Cármen Lúcia, ao acompanharem o Ministro Benedito Gonçalves, deixaram destacado o caráter “excepcionalíssimo” da medida. 

Nesse cenário de indefinições, abre-se espaço para controvérsias não desejáveis sobre se os conteúdos veiculados nos canais do YouTube como o da Jovem Pan, Brasil Paralelo, Terra Brasil Notícias e outros semelhantes,  e para questionamentos sobre se haveria de fato violação ao que estabelece a Lei Eleitoral e riscos de ameaças para a liberdade de expressão e para o direito à comunicação.

Ou seja, há indiscutivelmente lacunas a serem preenchidas não apenas por Resoluções emitidas pelo TSE, sendo importante que as medidas a serem propostas pelo atual Governo tragam disposições capazes de enquadrar de forma inequívoca como ilegais os conteúdos de canais desinformativos e instigadores do caos, que, incontestavelmente atuam para burlar os limites da propaganda eleitoral, como é o caso da proibição do financiamento de campanha por empresas e do abuso de poder econômico.

Outro ponto a ser contemplado por novas medidas é impedir os sistemas algorítmicos de recomendação adotados pelas plataformas, quando se tratar de conteúdos de natureza política durante as campanhas eleitorais, que têm ampliado o alcance de conteúdos ilegais que promovem desinformação com foco no aumento de engajamento e, consequentemente, no aumento de lucros pela monetização e pela coleta maior de dados pessoais feita com desrespeito à Lei Geral de Proteção de Dados, com vistas ao perfilamento, em detrimento do interesse público e do equilíbrio entre os candidatos.

Esperamos, entretanto, que o Governo, para a edição de novas regras, promova debates amplos com os diversos segmentos da sociedade civil e inclua o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), organismo multissetorial, voltado desde 1995 para a Governança da Internet, que conta com trabalhos e debates relevantes já publicados a respeito de eleições, tendo em vista suas atribuições estabelecidas pelo Marco Civil da Internet, o que poderá revestir o aguardado processo legislativo de dose imprescindível de caráter democrático.

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Direito de resposta

Em 22 de setembro de 2023, a produtora Brasil Paralelo entrou em contato com Mobile Time solicitando direito de resposta ao artigo da colunista Flávia Lefèvre, enviando esclarecimentos.

A produtora afirma que “jamais pautou suas obras pela defesa desse ou daquele grupo político-ideológico, sem jamais ter atuado em favor de qualquer candidatura eleitoral, e, muito menos, promovido tentativa de golpe de estado”. Afirma ainda que “atua jornalisticamente e presa pela sua imparcialidade, sempre tendo embasado suas produções em dados, informações e documentos históricos.” Sobre sua fonte de recursos, declara que são os valores oriundos das assinaturas do seus membros e da monetização de seus vídeos em plataformas virtuais.

 

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