O sonho era que todos pudessem ter sua voz ouvida, sem intermediários, sem filtros, sem barreiras. Pelo menos era assim há quase 30 anos, no já longínquo 1995, quando a internet chegava pelo Brasil. Se pretendia democratizar o acesso à informação com todos os impactos disto na sociedade, refletindo em melhores condições de educação, desenvolvimento de negócios, colaboração, enriquecimento do povo.
A partir do ano 2000, com a privatização e desenvolvimento de redes móveis no país, aceleramos o movimento de digitalização. Atualmente há mais celulares do que pessoas no Brasil, a grande maioria com acesso à internet em velocidades de 4G. Nas redes fixas, vimos uma interiorização dos esforços para conectar o interior do país nos últimos 5 anos, levando acesso em velocidades que igualam as cidades do interior com as grandes capitais, eliminando a diferença na quantidade e velocidade de informação disponível para quem está em cidades menores.
Minha carreira foi baseada neste princípio. Quanto mais conexão, mais evolução, mais riqueza. Vamos avançar mais rápido. Até certa medida, deu certo. O que não se esperava era que ao darmos voz a todos, ouviríamos tanta discórdia.
Conectar todos criou muito ruído. E descobrimos que não concordamos em muita coisa. No passado, bastava uma bandeira, território, mitos, linguagem e moeda, daí teríamos um país. Nas últimas décadas, nem tanto. Especialmente depois de descobrirmos que nossos vizinhos não pensam tanto assim como nós. Especialmente depois que o mundo ficou tão complexo.
Ainda hoje estamos sentindo os efeitos de 2016, quando um presidente de uma super potência foi eleito com o uso de fake news. Logo depois, em 2018, parte dos eleitores no Brasil elegeu o atual mandatário, motivando investigações e penalidades que irão impactar até o próximo ciclo eleitoral.
O ruído online nos impacta. A sociedade pressiona seus líderes para minimizarem os problemas. Mas será que simplesmente regular e limitar de alguma forma as redes sociais irá nos trazer algum alento? Afinal, historicamente já se provou que a regulação de conteúdos leva muito facilmente à censura, um mal que as democracias liberais extinguiram e tentam manter sob controle. A censura em tese só é utilizada como última ferramenta, em casos graves. O conceito de liberdade de expressão e liberdade de imprensa nos é relevante, logo a sociedade, como um todo, assume os riscos de conviver com excessos, que seriam corrigidos através da censura, para que todos tenham a liberdade de se expressar.
Pelo menos assim foi até aqui. O problema é que quando temos 180 milhões de brasileiros online, se expressando, temos uma questão de volume. O ruído que as redes sociais criam gera massas insanas que se apressam em acusar, julgar e cancelar. A velocidade não permite nem tampouco favorece a compreensão, logo somos rasos e, não raro, cometemos injustiças. Foi tudo o que bastou para que o sistema do mercado de ideias de Milton e John Stuart Mill chegasse ao seu limite, impedindo que a verdade apareça rapidamente em qualquer tipo de debate veloz. A teoria funcionou bem enquanto estávamos discutindo em meios como jornais e rádios, mas sofre para conter trolls, fake news e outros males da comunicação no século XXI. Esta fragilidade já foi apontada por estudiosos como Jason Stanley em seu Como funciona o Fascismo, comentando sobre a formação de bolhas de conteúdos que impedem a penetração da verdade ou de maiores esclarecimentos.
Somando velocidade de disseminação e as bolhas de conteúdos criadas por algoritmos, chegamos ao nosso mundo de 2022. Não era para ter sido assim.
As soluções, tanto de ordem prática quanto regulatórias, ainda não estão claras, mas não passam por somente criar novas regras ou impor alguma medida de censura prévia na internet, como se tem discutido no Projeto de Lei 2630/2020 (a Lei das Fake News). Na verdade já temos consequências um tanto radicais, como a descoberta em pesquisa recente de que 54% dos brasileiros evitam ler notícias. De todo modo, se reputa ao constante ruído nos mundos online o renascimento do jornalismo de qualidade, transfigurado em newlsetters, portais pagos, agências de notícias independentes e outros modelos que surgem. A curadoria renova sua relevância em meio ao caos.
Talvez mais importante do que tudo isto seja a atualização dos sistemas sociais de controle de conteúdo, mediante reforço do papel do Judiciário. Desde a redemocratização, coube a este poder da República a missão de avaliar a gravidade de discursos ou ideias para determinar sua exclusão ou não, ou seja, a censura. Com a velocidade de disseminação de conteúdos online o papel do Judiciário foi sendo reduzido a medida que seus procedimentos não trazem justiça imediata – ao menos não no imediatismo necessário – e acabam inundados. O papel do Judiciário como avaliador e julgador é determinado pela Constituição e a terceirização deste para os gestores de redes sociais acaba por privatizar parte das funções de um dos poderes constitucionais, o que talvez não funcione a longo prazo, até por desbalancear os pesos e contrapesos da República, que já trazem limites a atuação do Judiciário e seus integrantes pelo Legislativo e Executivo, impedindo uma ditadura de magistrados.
Assim, reforçar o treinamento dos juízes para lidar com o mundo digital e suas nuances, criar varas especializadas, digitalizar processos, aumentar a disponibilidade de juízes e criar formas de aumentar a capacidade de atendimento do Judiciário seria uma bela tentativa de atender aos clamores por justiça, usando a ferramenta da censura ou não. No mundo de complexidades e crises em que nos encontramos, acelerado nos últimos anos pela onipresença da internet nas discussões públicas, cair na tentação da censura via regulação prévia pode se provar distópico. E distopia, atualmente, já não nos falta.