Lina foi a primeira a gritar que o rei estava nu e agora terá sua chance nos tribunais para tentar provar. Em 2017, quando seu artigo “O Paradoxo do Antitruste” foi apresentado, não havia rusgas entre o governo norte-americano e as big techs, que eram festejadas por trazerem inovações a preços baixíssimos ao mundo. E a Amazon, como líder do varejo online, estava na dianteira da criação de práticas comerciais para tentar solidificar sua posição de liderança, já que a maior parte de suas inovações não era tecnológica, mas de modelos comerciais e no relacionamento entre consumidores e varejistas. A Amazon inventou o modelo de marketplace que conhecemos hoje em dia, em que qualquer pequeno empresário pode revender produtos em grandes estabelecimentos de ecommerce, utilizando sua capacidade logística, sistemas de pagamento e preços. A Amazon foi quem inventou a compra com um clique. A Amazon inventou o que chamamos de comércio eletrônico há 20 anos.
Por isso o artigo de Lina foi tão polêmico em 2017. Até hoje a regulação antitruste norte-americana foca em concentração e precificação. Criada no final do século 19 e início do século 20 para responder à concentração monopolística decorrente do final da 2a Revolução Industrial, quando os EUA se tornaram o grande motor de inovação industrial do mundo, a regulação foi sedimentada na época da 1a Guerra Mundial e serviu de base para a regulação antitruste em todo o Ocidente e boa parte do Oriente. Seu foco é impedir que empresas concentrem muito mercado e logo aumentem seus preços aos consumidores, o que conhecemos como monopólio, além de impedir que empresas adquiram seus concorrentes, baixem preços artificialmente (dumping), combinem preços (cartel), dentre outras práticas que hoje são conhecidas do noticiário econômico.
O artigo de Lina, contudo, acusava o mofo que se acumulava na legislação, focada apenas no prejuízo aos consumidores, colocando em xeque o que é até hoje a maior defesa da Amazon às acusações feitas: o preço baixo. Ao reduzir agressivamente preços finais aos consumidores e exigir a melhoria nas cadeias de fornecimento, concentração de estoques em seus armazéns e outras práticas, a Amazon inovou ao reduzir preços aos consumidores e se aproveitar da inexistência de lojas físicas para se tornar relevante no comércio varejista norte-americano. Sua defesa contra quaisquer práticas monopolistas foi provar que os valores finais dos produtos que vende estavam caindo, não subindo, derrubando o argumento de que haveria uma concentração prejudicial. Como todas as demais big techs, também sempre se defendeu lembrando que haveria outras grandes empresas para brigar e tomar seu lugar caso não atuasse de forma extremamente competente e agressiva, no que é o maior mercado consumidor do mundo em termos de valor gerado.
No caso da Amazon, que defende que compete não só com outras plataformas de comércio eletrônico mas com todo o varejo norte-americano, que também envolve lojas físicas e até a loja de conveniência do posto da esquina, sequer haveria algum monopólio. De fato a Amazon não chega nem perto de ter algo similar a um monopólio se considerarmos todos os estabelecimentos comerciais nos EUA. Mas as ideias de Lina desafiavam este conceito. Seus principais argumentos foram:
Poder de mercado importa sim. Que empresas com poder de mercado significativo devem ter regulação diferenciada e serem acompanhadas mais de perto pela regulação do Governo, tendo regras mais rigorosas para observar. O conceito foi amplamente adotado em diversos países e blocos regionais, inclusive no Brasil e na União Europeia, ainda que nos EUA não tenha havido uma atualizaçao das leis antitruste para incluir este conceito em sua legislação.
Preços reduzidos artificialmente. A venda de produtos com preços subsidiados e com prejuízo para conquistar mercado foi uma prática da Amazon por anos, aproveitando-se do período de juros baixos e crédito farto para as empresas de tecnologia norte-americanas, o que também ocorreu no Brasil ao longo da segunda década dos anos 2000, até a pandemia chegar. Lina acusava a prática como predatória e capaz de impedir outros concorrentes, mais eficientes, de competir com as gigantes, sem terem acesso ao crédito barato que estas teriam.
Abordagem mais ampla. Seu estudo defende a abordagem das formas com que uma empresa se relaciona não apenas com seus consumidores em relação ao preço de seus produtos, mas com a cadeia de fornecedores, os funcionários, os investidores, ou seja, todos os stakeholders de uma organização. Lina denunciava especificamente as práticas impostas aos fornecedores da Amazon, que agora são justamente um dos principais argumentos de seu processo judicial.
E Joe comprou a ideia. A partir de 2021, Joe Biden empossa Lina no comando da FTC, lhe dando as armas que faltavam para entrar em uma briga judicial. O FTC norte-americano não tem correspondente no Brasil, mas seria um misto de CADE (nosso órgão de regulação de competição econômica), SENACON (Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor, uma espécie de PROCON federal e agregador dos temas de defesa do consumidor) e CONAR, regulando a publicidade norte-americana. Seu papel é revisar e defender as melhores práticas de comércio nos EUA e o relacionamento entre consumidores e empresas, em todos os seus níveis. Como é especialista em antitruste e no papel de presidente da FTC, Lina colocou o órgão para preparar o caso contra a Amazon, que agora foi apresentado aos tribunais nos EUA. Em sua apresentação do processo à imprensa os argumentos de seu artigo ecoam de maneira clara:
“Estamos apresentando este caso porque a conduta ilegal da Amazon sufocou a concorrência em grande parte da economia online. A Amazon é um monopólio que utiliza seu poder para aumentar os preços para os compradores americanos e cobrar taxas exorbitantes de centenas de milhares de vendedores online”, disse John Newman, Diretor Adjunto do Bureau de Concorrência da FTC. “Raramente na história da legislação antitruste dos Estados Unidos um caso teve o potencial de fazer tanto bem a tantas pessoas”.
Os argumentos legais apresentados são justamente o que a FTC entenderia como práticas comerciais predatórias, como obrigar fornecedores a utilizar os armazéns da Amazon para estocar seus produtos, serem impedidos de vender seus produtos por preços menores em outros marketplaces, compra de mídia na própria Amazon para anunciar os produtos sendo comercializado por lá, além de não poderem reclamar se porventura a Amazon privilegiar seus próprios produtos em detrimento daqueles dos fornecedores que utilizam sua plataforma.
Na visão da FTC, a Amazon estaria impedindo a competição e prejudicando os consumidores de conseguirem melhores preços no comércio eletrônico. E este é um argumento dificílimo de ser comprovado, dadas todas as variáveis do comércio nos EUA. Não à toa a Amazon se pronunciou da mesma forma como sempre contra argumentou sobre este tipo de iniciativa, lembrando que seus competidores são variados e seu poder de mercado não é tão significativo quanto se alega.
O processo judicial ainda está em seu início e é bem provável que dure anos. É possível também que sequer termine, caso haja um acordo entre a Amazon e a FTC. O que já se sabe e se pode prever é que o varejo virtual como o conhecemos pode mudar e mudar muito. As mudanças que este processo podem implicar vão desde a atualizaçao das leis sobre comércio eletrônico nos EUA, influenciando o Brasil, como já ocorre com a nova lei de mercados virtuais da União Europeia, que é baseada no artigo famoso de Lina e traz regras e inovações para o comércio eletrônico, já influenciando estudos e projetos de lei por aqui. Também podemos ter impactos na forma como as plataformas de comércio eletrônico trabalham com sua cadeia de fornecedores e vendedores, na forma como o modelo de publicidade ocorre nas plataformas e até na maneira como os modelos de assinatura do tipo Prime se estabelecem.
Na sua apresentação do processo, Lina foi cautelosa em não detalhar quais seriam os remédios comerciais e punições que a FTC buscaria acaso os tribunais reconheçam seus argumentos. Por ora Lina só quer provar que o rei está nu.