De todas as sanções financeiras aplicadas pela Anatel desde sua fundação, em 1997, até hoje, pouco mais de 11% foram pagas em valores integrais. Quase 90% – montante que chegaria a alguns bilhões de reais – não foram honradas totalmente pelas empresas e operadoras por diversos motivos, como o arrolamento das dívidas por vários anos, a costumeira judicialização, e os diversos recursos. “Vivenciamos aplicações de multas de bilhões, pagamentos irrisórios, e insatisfação. Causa-me desconforto dizer que apliquei tantas multas e que não houve quase nenhum retorno para a sociedade”, afirmou Karla Crosara, superintendente-executiva da agência.
“Desde que entrei na Anatel, dizia-se que não deveríamos ser uma fábrica de multas. Pois é o que nos tornamos. A maioria não é paga, ficam décadas em judicialização, e é como se a gente trabalhasse aqui para nada: as empresas sempre cometendo infrações, a agência aplicando sanções, e o problema não sendo resolvido”, criticou o conselheiro Moisés Moreira, em entrevista ao Mobile Time.
A saída encontrada pela Anatel para este desafio foi a mudança de modelo de regulação: o modelo seguido atualmente é o chamado “comando e controle”, quando qualquer irregularidade cometida é punida, sem nada ser feito para que o problema seja previamente resolvido. Já o modelo aprovado para ter início em outubro deste ano é o chamado “responsivo”, baseado no diálogo entre o regulador e o regulado, na confiança, a fim de evitar que a infração seja cometida. Nos casos inevitáveis, a multa é mantida, mas apenas quando o comportamento do regulado não corresponder ao que se espera dele.
“Os preceitos da regulação responsiva traduzem-se numa pirâmide, onde a base é o mais importante: o diálogo entre regulador e regulado. Existem uma série de medidas que buscam extrair do administrado a qualidade e a satisfação do consumidor. A ideia é evitar a infração antes de qualquer medida que implique punição. Esta etapa de diálogo é uma mudança de paradigma que exigirá de ambos os lados uma relação de confiança”, explicou o conselheiro Moreira, relator do texto na Anatel. “Pela teoria responsiva, os degraus da pirâmide vão subindo de acordo com a resposta do administrado. A atuação vai ficando cada vez mais pesada conforme o administrado não cumpra o que tiver que fazer. Pode chegar em sanções tão pesadas quanto as que existem hoje”.
Afrouxamento de regras?
Para construir este ambiente novo, no entanto, é importante entender que a regulação responsiva não se trata de uma panaceia para todos os problemas, muito menos de afrouxar a regulação. É um modelo que dá mais trabalho, uma vez que se baseia no diálogo entre as partes e no acompanhamento constante. A sanção não deixa de existir e segue sendo recomendável. A diferença é que o modelo responsivo entende que nem todo regulado é um descumpridor de normas contumaz.
Segundo o professor Marcio Iorio, do Núcleo de Direito Setorial e Regulatório da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília), é preciso estruturar uma comunicação adequada à sociedade para que ela entenda do que estamos tratando. “Não se está saindo de um mundo perfeito para o arriscado. Estamos num mundo muito ruim: os agentes setoriais não estão cumprindo a regulação. Essa lógica de comando e controle investe numa atividade que não gera retorno, não gera recursos, não gera nada: é uma verdadeira fraude institucional. O que se propõe é uma melhoria da administração pública, que se concentra na melhoria do comportamento”, explicou.
Monique Barros, diretora regulatória da Claro, ressalta que não se trata de uma mudança de regulação que vai proteger ou beneficiar as operadoras. É algo que afetará diretamente o consumidor. “A sociedade tem que entender que as prestadoras não serão beneficiadas por esta regulação. Para nós, ter um cliente insatisfeito é extremamente nocivo para nossa imagem. Queremos ter um bom relacionamento e todas as demandas endereçadas. O objetivo é fazer melhores entregas ao consumidores e isso só vai acontecer quando ganharmos a confiança da sociedade”, disse.
OCDE
A regulação responsiva está inserida nas Políticas Regulatórias de Governança da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que têm por objetivo recomendar a adoção de políticas e práticas de governança para propiciar eficiência regulatória. Segundo a organização, as normas fiscalizatórias sugeridas têm como objetivo buscar a orientação e a boa conduta dos agentes regulados, mediante instrução e acompanhamento. O resultado seria uma melhoria do desempenho dos agentes e uma clara redução de custos.
Na Anatel, o debate sobre este modelo surgiu por volta de 2015. “Havia uma necessidade de mudar nosso jeito de trabalhar. A agência quer buscar a solução do problema. Se o regulado apresentar um plano de resposta e executá-la, não existe motivo para configurar uma infração. É um ajustamento de conduta, evitando o litígio e o trâmite judicial”, afirmou Gustavo Borges, superintendente de controle de obrigações e coordenador do Grupo Técnico de Segurança Cibernética e Gestão de Riscos de Infraestrutura Crítica (GT-Ciber) da Anatel. “Vamos criar um ambiente onde se possa ter um debate em que as dúvidas sejam sanadas. Um espaço em que a empresa possa se manifestar. A agência vai estar mais pautada para este tipo de atuação, para acompanhar as condutas a depender do caso concreto, de acordo com a postura da operadora”.
Operadoras
E o que as prestadoras, ou seja, os agentes regulados, pensam disso? Parecem estar animadas com a mudança de regulação e concordam com o caminho proposto pela Anatel. Porém, colocam algumas ponderações. “Só se constrói confiança com transparência. Lembro que é importante colocar o TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) neste mesmo conceito responsivo”, apontou Carlos Eduardo Franco, diretor de relações regulatórias da TIM, durante o evento online “Regulação Responsiva: Diálogo entre os diferentes atores: papel da confiança e cooperação entre o papel do regulador, empresa e sociedade”, promovido pela Anatel nesta semana.
Cristiene Evaristo, gerente de assuntos regulatórios da Algar, lembrou que ainda existe, de ambas as partes, alguns preconceitos enraizados, que devem ser quebrados. “Como ir para a mesa de negociação com confiança, sem achar que vai haver uma punição imediata? Existe um único propósito dos dois lados, tanto das operadoras como da agência: o consumidor. A satisfação dele que é o nosso ideal e que deve permear as negociações”, disse.
A diretora de regulação da Oi, Adriana Costa, também apontou para os consumidores como um termômetro e que suas reclamações são mais importantes para a operadora do que um artigo ou inciso. “Considero a regulação responsiva um mar de oportunidades. Mas o regulado e o regulador precisam evoluir nos seus papéis. Se eu, como regulado, apresento minhas mazelas para a Anatel, e também um plano efetivo de resolução, é necessário que a responsividade seja aplicada e que eu não seja sancionada por isso. Nossos papéis têm um longo caminho para evoluir”, refletiu.
“Existe, sim, uma resposta positiva das operadoras. O importante é o estabelecimento da confiança. As empresas estão apostando neste novo modelo porque, para elas, quanto mais rápido restabelecerem a questão, melhor será para sua imagem. É um ganha-ganha: o regulador consegue a regularização da conduta, a empresa consegue uma redução da penalização e uma abertura maior de diálogo. Mas ressalto: nunca iremos abrir mão do tacape”, resumiu Karla Crosara.