|Publicado originalmente na Agência Pública como parte do projeto Sentinela Eleitoral|
Pesquisadores não costumam perceber uma tendência desinformacional antes que ela se torne um movimento dentro da ultradireita. Mas, quando a desinformação não é desmentida de maneira contundente logo no início – em especial quando se trata de teorias da conspiração – ela pode virar uma maneira de ganhar dinheiro e capital político.
Em junho de 2020, o Fórum Econômico Mundial se reuniu para sua 50ª reunião anual, batizada de “The Great Reset”, ou “O grande reset”, que podemos traduzir para ‘um grande recomeço’. A ideia do alemão Klaus Schwab, fundador do Fórum, era debater estratégias para diminuir a desigualdade social, aumentar ações para mitigar as mudanças climáticas e trazer sustentabilidade ao crescimento econômico a longo prazo, após a crise profunda provocada pela pandemia. Uma das propostas era desenvolver novas métricas para complementar os índices tradicionais de crescimento, tais como o PIB, além de trazer a inovação em plataformas digitais, a chamada “Indústria 4.0”, como principal mote para a solução de problemas que vão desde o trânsito nas grandes cidades até a escassez de alimentos.
A abrangência dos planos propostos por Klaus Schwab e os sentimentos provocados pela incerteza da pandemia trouxeram à tona várias teorias da conspiração. Em especial, os planos difusos do Fórum serviram de combustível novo para velhos esquecidos da mídia, que hoje ganham a vida nas redes sociais onde conseguem atenção por sentimentos como medo e ódio.
Um exemplo foi o livro lançado por Glenn Beck, político conservador, espalhador de notícias falsas e dono da Mercury Radio Arts nos Estados Unidos. Em seu livro Glenn afirma que “o grande reset” é uma conspiração entre banqueiros, empresários e governos para fundar o totalitarismo global, impondo uma agenda verde, mais direitos para as mulheres e igualdade social. Segundo ele, isso geraria a desaceleração da economia e levaria as pessoas ao desemprego.
Outras teorias envolviam desde o feminismo até a guerra da Rússia contra a Ucrânia como parte de um grande plano globalista de dominação – a máquina de propaganda do regime de Putin publicou por muitos meses alegações de que o “Grande Reset” seria um código para oligarcas acumularem riqueza e controlarem populações.
O roteiro é conhecido. Tudo começa com rumores em redes sociais, histórias que vão se espalhando até viralizar. Hoje, as teorias do “grande reset” já estão em fase avançada. Algumas pistas, como a grande quantidade de avaliações do livro de Glenn Beck na Amazon – mais de cinco mil, com uma nota final de 5 estrelas – e o crescimento no número de citações sobre a teoria nas redes indicam que existe uma tentativa de dar tração às narrativas falsas.
Citações também a Nova Ordem Mundial
O “grande reset”, aliado ao termo “nova ordem mundial”, aparece nas principais redes sociais. Analisando menções no Twitter, Youtube e Facebook, quatro termos aparecem conectados: “new world order”, “nova ordem mundial”, “o grande reset” e “the great reset”.
Em particular, a hashtag #GrandeReset aparece em citações em italiano e em português. Durante a pandemia houve um pico de atividades relacionadas a essas hashtags no Facebook, mas as citações e posts vem aparecendo de modo esparso em diversas redes.
No Facebook, desde janeiro de 2020 até maio de 2022 houve curvas semelhantes para as quatro expressões, com momentos de maior pico durante o início da pandemia.
Teoria chega ao Brasil
Não demorou para que a direita mais radical do Brasil pegasse carona nas teorias conspiratórias. O Instituto Mises foi um dos primeiros a embarcar, associando o “grande reset” às medidas restritivas para combater a Covid-19, que por sua vez foram vistas como uma maneira de “treinar” as pessoas a obedecerem.
De 2020 para cá, a direita mais radical e conspiracionista tem lucrado com vídeos que propagam essa narrativa. Youtubers que vivem de prestar serviços duvidosos de aconselhamento ou de vender vídeos e cursos embarcaram na narrativa, focando muitas vezes na insegurança econômica de certos países – eles propagam que uma elite global está usando a pandemia de coronavírus para desmantelar o capitalismo e impor mudanças sociais radicais.
Um expoente desse tema é o pastor brasileiro Rafael Bittencourt, que tem no Facebook 775 mil seguidores e utiliza seu canal para fazer propaganda de cursos sobre “geopolítica” e a teoria sobre o “grande reset”, além de fazer marketing de seus outros canais e pedir doações via PayPal.
O método do “pastor” se repete para outros influenciadores que se sustentam com base na distribuição de teorias da conspiração. Outro canal que se sobressai explorando esses temas é o canal chamado de “O documentarista”, ou “Uncle Lu”, verificado pelo YouTube com 2,33 milhões de seguidores. Em seu vídeo sobre o “grande reset”, visto por mais de 54 mil pessoas, ele mistura alienígenas, chips implantados no cérebro, e uma união entre empresários e governos poderosos para dominar a raça humana.
Outro exemplo é o canal de Débora G Barbosa, youtuber que vende cursos variados sobre diversos assuntos. Um de seus cursos, por 699 reais, promete contar sobre “os controladores do mundo” e sociedades secretas. Os cinco vídeos publicados sobre o “Grande Reset” já foram assistidos por volta de 1 milhão de pessoas. Outro produto oferecido é a análise de filmes e séries com base nas teorias da conspiração, que custam aproximadamente 250 reais cada. Com 727 mil seguidores no Youtube, ela se vale de uma estratégia multiplataforma: livro na Amazon, site próprio, perfil nas principais redes sociais e um endereço para depósitos, pagamentos e doações.
Trata-se de uma estratégia antiga para manipular os dados da web para aparecer nos primeiros lugares de busca global, ainda que o Google utilize a etiqueta “teoria da conspiração” para conteúdos ligados ao termo “nova ordem mundial” ou “o grande Reset”.
Produtores de desinformação possuem contas em diversas plataformas como Gettr, Telegram, Facebook, Twitter, Instagram, livros na Amazon e sites próprios, pois assim aumentam suas presenças online e a probabilidade de suas contas aparecerem em sites de buscas como o Google.
A disseminação da teoria da conspiração “Grande Reset” pelo Brasil deixa claro como, em um curto espaço de tempo, influenciadores digitais com o intuito de monetizar em cima de visualizações e engajamentos traduzem e se apropriam de teorias produzidas no exterior, principalmente nos EUA.
Teorias da conspiração sempre existiram; a questão atual é que influenciadores e políticos extremistas servem de pontes para trazer tais teorias da periferia para o centro do debate público – monetizando financeiramente e politicamente. Enquanto isso, as próprias redes sociais não fazem muito para combater tais teorias, já que as plataformas também monetizam bastante com os engajamentos.
No final das contas, o Grande Reset é na verdade um Grande Negócio.
Colaborou: Yasodara Cordova