Na semana em que o WhatsApp apagou as luzes no mundo inteiro, o Telegram brilhou. Em menos de 24 horas, o aplicativo de mensagens ganhou nada menos do 70 milhões de inscritos, que descobriram um admirável mundo novo: um lugar em que existem grupos com centenas de milhares de pessoas; onde mensagens podem ser enviadas indiscriminadamente; e no qual há pouco ou nenhum controle sobre assuntos tratados. A promessa é a liberdade de expressão total. E a conta a pagar, entre a possibilidade de crimes, é a disseminação sem limites da desinformação.

Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), investigado pelo STF, suspeito de contratar um esquema pelo Whatsapp, durante as eleições de 2018, que disseminou notícias fraudulentas, estão lotando o Telegram. O próprio presidente, aliás, é um divulgador contumaz do app. “Muitas redes sociais encontram-se com instabilidade constante, siga-nos no nosso canal do Telegram”, escreveu Bolsonaro em seu Twitter na última segunda-feira, 4. O canal já passa de 1 milhão de inscritos. Seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (sem partido), publicou mensagem parecida com a do pai poucos minutos antes. “WhatsApp caiu? Faça parte do meu canal do Telegram e não perca nenhuma notícia”, escreveu Flávio, com mais de 92 mil inscritos.

Não por acaso, grupos que foram restringidos por disparos em massa no WhatsApp, e punidos por fake news ou perfis falsos em outras redes, estão migrando, pouco a pouco, para o Telegram. No Brasil, é o caso de organizações de direita, extrema direita e conspiradores em geral. Ao contrário do WhatsApp, o Telegram tem um sistema de busca, facilitando a descoberta de grupos de acordo com o tema de interesse, e qualquer um pode entrar. Há, por exemplo, grupos sobre a teoria conspiratória do QAnon. Pesquisa realizada pela empresa de inteligência cibernética Cyberint em parceria com o Financial Times aponta que nos últimos meses o número de criminosos que acessam o Telegram dobrou, e a quantidade de grupos do aplicativo que são compartilhados na dark web passou de 172 mil no ano passado para mais de um milhão no primeiro semestre de 2021.O aplicativo só veta – com força, aliás – o terrorismo e a incitação à violência. O restante está liberado.

De acordo com reportagem recente do El País, os canais informativos do Telegram com mais seguidores no mundo são um indiano sobre a Covid-19, seguido de contas da Malásia, Uzbequistão, Belarus e Etiópia, todos com mais de 1 milhão de usuários. Levantamento da reportagem aponta que na Rússia, e em outras antigas repúblicas soviéticas com governos autoritários, como Belarus e Uzbequistão, o Telegram é o app de mensageria mais baixado.

Em janeiro deste ano, em seu canal, o CEO do Telegram, o russo Pavel Durov, saudou os presidentes do Brasil, Jair Bolsonaro, e da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, ambos de extrema direita, pela inauguração de seus canais oficiais. Outros exemplos citados com orgulho como membros do app por Durov eram os então chefes de Estado da Etiópia, do Uzbequistão e Cingapura.

No Brasil, o Telegram não precisou da falha do WhatsApp para aparecer. De acordo com a pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box, de setembro, sobre mensageria móvel, o aplicativo está instalado em mais da metade dos smartphones brasileiros: 53%. Há um ano, já estava em 35% dos smartphones, ou seja, ganhou 18 pontos percentuais em 12 meses. E seis meses atrás estava presente em 45% dos aparelhos.

Sedução

Existem três principais motivos que tornam o Telegram atraente a grupos que se sentiram, de alguma forma, limitados em outras redes.

O primeiro é a possibilidade de falar com muita gente ao mesmo tempo. Bem ao contrário do WhatsApp e Signal, por exemplo, em que há limitação para o número de integrantes de grupos e a comunicação é mais individual. “O Telegram permite grupos com centenas de milhares de pessoas e isso ocasiona um descontrole. Por isso é considerado um antro para criminosos. Existem super grupos que podem ser encontrados por qualquer pessoa interessada”, apontou Cleórbete Santos, professor de Direito e Segurança Digital da Universidade Mackenzie, analista de inteligência, e gestor de Segurança da Informação e Proteção de Dados na Justiça Eleitoral.

Santos explicou que o Telegram não utiliza criptografia de ponta a ponta, como o WhastsApp. Ele é baseado na nuvem, e armazena as informações de conversas que não estiverem no chamado “chat secreto”. “Na criptografia de ponta a ponta ninguém pode ler suas mensagens: é um túnel criptografado criado entre o remetente e o destinatário. No caso do Telegram isso acontece só no chat secreto. Nas conversas normais, as mensagens ficam com eles. Tecnicamente eles podem ter acesso a tudo. Esta é a parte mais nevrálgica sobre proteção de dados e privacidade”, explicou.

O segundo motivo da migração para o Telegram é um argumento muito em voga nos últimos debates sobre moderação de conteúdo no Brasil: a liberdade total de expressão. Com ideias libertárias, o russo Pavel Durov fundou o Telegram, em 2014, na Rússia, com a bandeira da divulgação da informação, da não publicidade, do respeito aos dados, e da liberdade individual. Uma alternativa às Big Techs para a criação de conteúdo livre. “O Twitter também foi criado por ativistas que não tinham onde se manifestar”, afirmou Santos.

Flavia Lefèvre, advogada especializada em direito digital e do consumidor, representante do coletivo Intervozes e da Coalizão Direitos na Rede, ponderou: “Liberdade não é um direito absoluto ela tem limite. Sobretudo quando coloca a segurança das pessoas em risco. O Código de Defesa do Consumidor determina que é obrigação do fornecedor garantir um ambiente seguro, e o Telegram é um fornecedor sujeito às leis brasileiras”.

Este é justamente o terceiro ponto. Apesar de ser obrigado a seguir as leis no Brasil, o Telegram não conta com nenhum representante no País e existe uma dificuldade jurídica de acessar sua equipe. Depois de ser obrigado a deixar a Rússia por conta da legislação, o app tentou se fixar em vários locais como Berlim, Londres e Singapura. Atualmente a sede é em Dubai, “mas estamos prontos para nos mudar novamente se as regulamentações locais mudarem”, diz o texto oficial do aplicativo, que não respondeu aos questionamentos desta reportagem.

Legislação

Alguém poderia fazer valer a lei para o Telegram? Especialistas acreditam que sim. “Com as leis que a gente tem hoje, como o Marco Civil da Internet e o Código de Defesa do Consumidor, já seria possível, por exemplo, o TSE estar acompanhando o que acontece no Telegram antes das eleições do ano que vem para que não aconteça o mesmo que em 2018. É possível exigir que sejam adotadas medidas anti disparos em massa. O Ministério Público Eleitoral já deveria estar de olho nisso”, alertou Lefèvre.

Para Luiz Augusto D’Urso, advogado especialista em crimes virtuais, professor de direito digital da FGV, e presidente da Comissão Nacional de Cibercrimes da Abracrim (Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas), em primeiro lugar, é preciso aprovar uma lei, como o PL 2630, em trâmite na Câmara, que obrigaria qualquer fornecedor a ter um escritório no Brasil. “O Telegram não está preocupado com as eleições brasileiras, até porque ainda ele é muito elitizado no Brasil. Seus usuários não serão suficientes para mudar o jogo eleitoral. Garanto que nosso problema continuará sendo o WhatsApp”, observou.

De todo modo, o app russo segue sendo um ambiente aparentemente fora de controle – o que pode ser um perigo em época de eleições, como no ano que vem. “É importante destacar que o Telegram não é uma terra sem lei. Existe uma lei, sim. Ela só precisa ser aplicada”, finalizou Lefèvre.

 

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