A evolução tecnológica conduz os meios de pagamento rumo à invisibilidade. Trata-se de um inexorável processo de desmaterialização, que atinge o dinheiro em espécie, o cartão de crédito na sua forma física de tarjeta de plástico e até a maquininha de POS. No Brasil, várias iniciativas contribuem para essa transformação, como o sucesso do Pix, o fomento dos emissores aos cartões virtuais, a popularização dos pagamentos por aproximação com carteiras digitais, o lançamento do tap on phone e a chegada de pagamentos por biometria facial.
“Há um processo de desmaterialização em andamento no Brasil e no mundo. Parte dele se deve a mudanças tecnológicas, outra parte, a mudanças de comportamento e mudanças geracionais, com ganhos em praticidade, facilidade e agilidade”, reconhece Boanerges Freire, CEO da Boanerges & Cia Consultoria, em conversa com Mobile Time.
Diversos dados do Banco Central indicam uma aceleração nesse processo de desmaterialização. A começar pela queda no uso de dinheiro em espécie. Isso é verificado pela redução no volume total de saques feitos pelos brasileiros. No quarto trimestre de 2020, em plena pandemia, foram feitos 1,1 bilhão de saques, somando R$ 758 milhões. Pouco mais de um ano depois, no primeiro trimestre de 2023, mesmo com a pandemia deixada para trás e os brasileiros tendo voltado às ruas, a quantidade de saques caiu 47%, somando 588 milhões de transações, que totalizaram R$ 487 milhões.
A diminuição dos saques não se deve a um esfriamento da economia nacional. Pelo contrário, a atividade econômica está aquecida, e o PIB está aumentando. O que acontece é que o brasileiro está trocando o dinheiro em espécie por transações digitais, especialmente o Pix, que caiu no gosto da população. É a desmaterialização do dinheiro físico.
Praticamente três anos após seu lançamento, o Pix tem 153 milhões de usuários, praticamente toda a população adulta do País. E tem 445 milhões de contas cadastradas, das quais 422 milhões são de pessoas físicas, de acordo com dados do Banco Central de agosto de 2023. Naturalmente, a quantidade de transações vem crescendo a passos largos. Entre outubro de 2021 e agosto de 2023, o volume mensal mais que triplicou, passando de 1,2 bilhão para 3,8 bilhões. Em valores por mês, no mesmo intervalo, subiu de R$ 580 bilhões para R$ 1,5 trilhão.
O Pix inicialmente substituiu as transferências entre pessoas físicas, mas nos últimos meses vem ganhando força também no varejo físico e on-line, sendo cada vez mais utilizado para pagamentos. Isso ocorre graças à integração dos softwares de frente de caixa com o sistema de pagamento instantâneo, gerando um QR code para envio de Pix. E também se deve à inclusão do Pix no comércio eletrônico, seja com QR code em sites, seja com o sistema de copiar e colar o código, no caso de apps. Isso fica claro, mais uma vez, nos números divulgados pelo Banco Central. A participação de transações P2B, ou seja, de pessoas para empresas, sobre o total de pagamentos instantâneos no Brasil saltou de 16% para 33%, entre outubro de 2021 e agosto de 2023. Em números absolutos, é ainda mais impressionante: no mesmo intervalo a quantidade de transações P2B com Pix aumentou cerca de sete vezes, passando de 152 milhões para 1,08 bilhão. Em valores, subiu de R$ 52 bilhões para R$ 145 bilhões.
A pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box sobre pagamentos móveis traz dados que reforçam essa percepção. Em três anos, entre agosto de 2020 e agosto de 2023, subiu de 48% para 82% a proporção de brasileiros com smartphone que já realizaram pagamentos escaneando um QR code com o aparelho. Esse salto pode ser atribuído, em grande medida, ao uso do Pix no varejo físico e online.
Cartão invisível
Os cartões de crédito e de débito também caminham em direção à desmaterialização. Sua versão física, o cartão de plástico, não precisa mais ser carregada na carteira. Ela pode ser substituída pelo smartphone, pelo automóvel com tag ou mesmo pelo rosto do usuário, com biometria facial.
A desmaterialização do cartão de plástico para pagamentos presenciais começou pelo uso de tags nos automóveis, há mais de 20 anos. Serviços como Sem Parar e ConectCar permitem vincular um cartão de crédito a uma tag RFID colada no para-brisa dos automóveis. Inicialmente utilizada para pagamento automático em pedágios e estacionamentos, essa solução está se expandindo para outras verticais, como postos de gasolina, drive thrus e lava-rápidos. Em todos eles, basta ter a tag lida para que o pagamento aconteça direto no cartão de crédito. O Sem Parar já oferece o serviço em 2,5 mil postos de gasolina, 700 drive thrus e 150 lava-rápidos.
“Concentramos nossa rede nas grandes cidades, onde está a maior parte do público do Sem Parar”, explica Gabriel Porto, CMO do Sem Parar. “Na pandemia, reforçamos a importância de pagamento contactless e a educação do mercado. Em três anos quadruplicamos o volume de transações. Nosso cliente valoriza não apenas o ganho de tempo, mas a comodidade e a tranquilidade da experiência.”, relata.
Depois dos carros, foi a vez das carteiras digitais, como Apple Pay, Google Pay e Samsung Pay, transformarem smartphones e relógios inteligentes em cartões de crédito e de débito, por meio dos pagamentos por aproximação. Essa forma de pagar está crescendo rapidamente. A participação dos pagamentos por aproximação sobre o total de pagamentos presenciais com cartão era de 13,5% em junho de 2021 e subiu para 48,4% em junho de 2023. A projeção da Abecs (Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços) é de que chegue e 56% em dezembro deste ano. Em quantidade de transações, os pagamentos por aproximação somaram 4,6 bilhões no primeiro semestre de 2022 e passaram para 7,6 bilhões no primeiro semestre deste ano, um aumento de 64,4%. De acordo com a pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box, a proporção de brasileiros com smartphone que já experimentaram pagar por aproximação com seu aparelho subiu de 17% em agosto de 2019 para 47%, em agosto de 2023.
O próximo passo na desmaterialização dos cartões consiste no uso da biometria facial para pagamentos. Com ela, o consumidor pode sair de casa sem carteira, smartphone ou relógio, e fazer compras usando apenas o seu rosto. Essa é a proposta da startup Payface, cuja tecnologia está presente em quase 1 mil estabelecimentos comerciais, como filiais dos supermercados Zona Sul, Prezunic, St. Marche e D’Ville. O usuário cadastra seu rosto previamente no app da PayFace e o associa ao seu cartão de crédito. A partir daí, consegue pagar com biometria facial nos estabelecimentos parceiros. A Payface agora trabalha para incorporar sua tecnologia nas próprias maquininhas de cartão: os modelos mais modernos vêm com câmera frontal. Já foi feito acordo com um primeiro fabricante, a Positivo. E agora, o modelo de negócios está sendo discutido com redes de adquirência, emissores e bandeiras de cartão. A ideia é que essas empresas paguem um pequeno valor fixo por transação com biometria facial, tal como acontece nos pagamentos com Apple Pay.
“Existe uma série de formas de pagamento que vão ser complementares. A própria biometria não será somente facial. Há casos de uso fora do Brasil como palma da mão e outras biometrias. A biometria facial veio para ficar, será relevante, mas não será a única”, pondera o cofundador e CEO da Payface, Eládio Isoppo.
Outra forma de desmaterializar o cartão de plástico é através da emissão de cartões virtuais, prática que está sendo estimulada pelos bancos como uma alternativa mais segura para compras online, pois, se o número for comprometido, é fácil bloquear e gerar outro, sem a necessidade de produzir um novo cartão de plástico.
Cabe mencionar também o lançamento do pagamento com cartão de crédito como recurso nativo do WhatsApp, o que deve fomentar ainda mais o comércio eletrônico brasileiro, tendo em vista que se trata do app mais popular do País, quase um superapp.
Maquininha invisível
Por fim, nem as máquinas de POS escapam do processo de desmaterialização. Através da tecnologia de tap on phone, o smartphone se transforma em uma maquininha para recebimento de pagamentos por aproximação, desde que tenha NFC. A primeira grande adquirente a lançar essa novidade no Brasil foi a Stone, no ano passado. Mais recentemente foi a vez da Cielo fazer o mesmo. O tap on phone é tido como uma maneira de democratizar o recebimento de pagamento com cartão, porque dispensa a compra ou o aluguel de uma maquininha, cujo custo inibe o acesso pelos pequenos comerciantes ou profissionais autônomos com menor poder aquisitivo.
“As soluções de tap on phone reafirmam o movimento de mercado de desmaterialização das tradicionais POS (maquininhas), tornando mais ágil e simples a jornada de pagamentos, protagonizada pelo contactless”, diz Renata Daltro, vice-presidente comercial de grandes contas da Cielo. “A nova solução da Cielo deve ser visualizada como um complemento do portfólio de meios de pagamentos já oferecidos e conhecido pela população. Trata-se de uma solução que pode ser complementar (extensão da maquininha), mas também pode ser utilizada como forma principal de pagamento, a depender do comportamento e perfil dos clientes”, acrescenta.
Além de atender a base da pirâmide, o tap on phone serve para agilizar pagamentos em grandes redes de varejo, com o pagamento sendo feito no smartphone do vendedor nos corredores das lojas, evitando que o consumidor entre na fila do caixa, diz a executiva.
Devagar com o andor
Apesar dos indicadores favoráveis, é preciso tomar cuidado para não superestimar a velocidade da desmaterialização dos meios de pagamento. A verdade é que se trata de um processo lento e que dificilmente será concluído algum dia.
“A desmaterialização não anda tão rapidamente quanto pensam aqueles que apostam nela. Quem está esperando isso acaba tendo um olhar enviesado, de quem só vê um lado da história”, alerta Boanerges, da Boanerges & Cia. “Temos um país continental. O Brasil parece uma reunião da ONU, porque temos aqui dentro desde países de primeiríssimo mundo, até aqueles com os piores indicadores sociais e econômicos. E às vezes olhamos apenas para um pedaço do Brasil”, critica.
A prova disso é que ainda há muita gente sem cartão de crédito, especialmente nos rincões do País. A penetração desse serviço financeiro segue avançando. E, para as pessoas que conseguem acesso pela primeira vez, o cartão de crédito vira um símbolo de status financeiro, cuja versão física, de plástico, é quase como um troféu, exibido com orgulho para familiares e amigos. Ou seja, ainda há muita gente que aspira ter um cartão de crédito para levar na carteira.
O dinheiro em espécie, por sua vez, pode até diminuir sua circulação, mas tampouco vai desaparecer por completo. Ele continuará tendo papel importante para pessoas de mais idade, nas cidades menores e nas periferias dos grandes centros urbanos, destaca Boanerges. Isso sem falar nas atividades ilegais, que seguirão preferindo operar com dinheiro para evitar a rastreabilidade.
A desmaterialização seguirá avançando, mesmo que lentamente. E enquanto não se inventa a transferência por telepatia, os meios de pagamento visíveis e invisíveis vão conviver lado a lado por muito tempo ainda.
——————————-
MobiFinance
As inovações em meios de pagamento serão tema de um painel de debate no 6º MobiFinance, dia 18 de outubro, no WTC, em São Paulo. Estão confirmados nesse painel:
Cassiano Rusycki, CEO, Riocard
Eládio Isoppo, cofundador e CEO, Payface
Leandro Mattos, vice-presidente de soluções de transferência, Mastercard Brasil
Luis Marcolino, diretor de transformação e crescimento, Sem Parar
Renata Daltro, vice-presidente comercial de grandes contas, Cielo
O evento terá também painéis sobre IA aplicada ao setor financeiro e sobre jornada móvel de investimentos, assim como palestras sobre uso de grafos e sobre tendências em m-commerce e m-payment no Brasil. A programação atualizada e mais informações estão disponíveis em www.mobifinance.com.br