O Ministro do STF Edson Fachin iniciou nesta segunda-feira, 9, audiência pública para ouvir diferentes vozes sobre o trabalho realizado por motoristas e entregadores por aplicativo. Sindicatos, especialistas, juristas, advogados e representantes das empresas deram suas opiniões se esses trabalhadores possuem ou não vínculo empregatício com as plataformas digitais, como deve acontecer a arrecadação para a previdência social e se a Justiça do Trabalho deve ou não ser a corte para que as decisões sobre este tema sejam encaminhadas.
O assunto em debate é objeto do Recurso Extraordinário (RE) 1446336, relatado pelo ministro e apresentado pela Uber que questiona uma decisão do TST (Tribunal Superior do Trabalho) que reconheceu vínculo empregatício entre a empresa e um motorista. A matéria tem repercussão geral reconhecida, ou seja, a decisão final do julgamento será aplicada a todos os casos em tramitação no Judiciário brasileiro, como também pode basear questões de motoristas de outros aplicativos e de serviços de entrega. A audiência ouviu somente nesta segunda 43 expositores e, ao todo, deverá ouvir 58.
Vínculo de trabalho, sim
O primeiro a falar foi Carlos Alberto Grana, representante do Ministério do Trabalho e Emprego, que reconheceu que se trata de uma categoria desregulamentada, sem proteção e com “jornadas insanas que devem ter um ponto final”. Disse também que o grupo de trabalho tentou elaborar uma proposta de regulamentação mínima, mas que, ao cabo dos oito meses, não conseguiu atingir o objetivo.
Benedito Brunca, diretor da Secretaria de Previdência Social e Trabalho, afirmou que as empresas têm a responsabilidade para com o financiamento da previdência social.
Renan Kalil, coordenador nacional de combate às fraudes nas relações de trabalho do Ministério Público do Trabalho, procurou se ater em explicar que a Uber não é uma plataforma digital, mas, sim, uma empresa de transporte. Defendeu que a empresa é proprietária de uma plataforma digital, cuja infraestrutura permite que ela organize e programe o desenvolvimento de sua atividade econômica. “A Uber afirma que é uma empresa de tecnologia e uma mera intermediária. Contudo, isto está muito distante da realidade. O que os clientes buscam é a prestação de serviço de transporte”, disse.
Kalil comentou que a Uber controla “de maneira pormenorizada” a atividade desenvolvida por cada motorista, tendo informações completas a respeito dos dados pessoais dos trabalhadores, valores recebidos, números de corridas realizadas, período de trabalho, tempo de atividade, inatividade e de espera. “As notas e as médias servem de parâmetro para a plataforma distribuir ofertas de corridas para os motoristas, suspender e bloquear os trabalhadores, precificar o valor da viagem, enviar promoções, dentre outras ações”, disse, para defender a tese de que existe um vínculo entre a empresa e os motoristas.
“Quanto maior a nota, maiores promoções recebidas, mais corridas, maior a remuneração média de trabalho. A Uber bloqueia por descumprimento exercendo o controle da quantidade de vezes em que os trabalhadores são punidos”, completou.
Magda Barros Biavaschi, representante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia deu como exemplos a legislação espanhola, que conseguiu que a Glovo transformasse seus entregadores parceiros em empregados da empresa.
“O capitalismo tem um desejo próprio de acumulação de riqueza abstrata. Ele busca sua essência e encontra diques, obstáculos ao seu livre trânsito, mas que são fundamentais para que as sociedades sejam efetivamente democráticas, iguais, ou busquem a igualdade. E um dos diques é justo o sistema público de proteção social ao trabalho. Abalar o sistema significa regredir à barbárie e à não civilização, afirmou na tribuna.
José Eymard Loguercio, da Central Única dos Trabalhadores, também admitiu que os motoristas por aplicativos são uma categoria muito heterogênea e “que há anos vem sofrendo as consequências de uma idealização de um trabalho autônomo, mas que, do ponto de vista jurídico, não é”.
“É fundamental que o Supremo adote uma premissa de que não se trata de uma relação comercial, de uma relação civil, mas estamos falando de uma relação de trabalho e que quem tem competência para lidar com esse tipo de relação é a justiça do trabalho”, afirmou.
Já Carlos Alberto Pereira de Castro, representante do Instituto Brasileiro do Direito Previdenciário, defendeu que esses trabalhadores não são empresários e muito menos empreendedores. E, entre motoristas e plataformas digitais, a relação não é comercial, mas de trabalho.
“Não é possível compreender na nossa ótica que se trate de uma relação puramente comercial por conta de que efetivamente essas pessoas vivem do trabalho e o que a empresa que explora a plataforma obtém de faturamento decorre única e exclusivamente deste trabalho”, disse.
Para Pereira de Castro, deixar as empresas que exploram as plataformas digitais sem contribuir para o financiamento da seguridade social é gerar uma benesse fiscal incabível.
“Hoje vivemos um fato histórico: o trabalhador falou no STF. Não se sobe à tribuna se você não for advogado, jurista. Foi uma audiência em que a realidade deste trabalhador ficou muito mais clara para o ministro Fachin”, comentou para este noticiário Sol Corrêa, advogada da Central da Força Sindical e do Sindicato dos Motoristas de transporte por aplicativo do Estado do Pará.
Nem CLT nem precarização extrema
O deputado Daniel Agrobom (PL-GO), da Frente Parlamentar em Defesa dos Motoristas e Moto-Entregadores por Aplicativos no Congresso, defendeu a autonomia do trabalhador e o não vínculo empregatício – por entender que esses motoristas não querem o vínculo. No entanto, pediu a criação de critérios claros para a remuneração mínima assegurando previsibilidade e respeito.
“Os profissionais por apps representam um exemplo de trabalhador autônomo, com livre iniciativa e livres jornadas de trabalho. Mas devem ser genuínas, não uma ilusão mascarada com relações de dependências disfarçadas. O equilíbrio entre autonomia e subordinação é tênue. Quando uma plataforma impõe metas, penalidades e controle do algoritmo, isso não é liberdade, mas subordinação velada”, comentou.
“As plataformas vêm diminuindo as tarifas para os profissionais por aplicativos. Como podem empresas que se dizem meras intermediadoras ou parceiros definir critérios sobre quanto deve ganhar o profissional da ponta”, questionou.
Leonel Augusto Gonçalves da Silva, diretor jurídico da Associação Brasileira de Condutores de Veículos Automotores (Abrava), sugeriu a criação de uma planilha de valor ou de custo mínimo estabelecido entre as corridas e o percentual descontado aos motoristas, “visando transparência” e que melhore a remuneração dos motoristas.
O que dizem as plataformas digitais
Entre os representantes das plataformas digitais falaram André Porto, da Amobitec, que apresentou alguns números de uma pesquisa inédita encomendada pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia e realizada pelo Ecoa, caso o Supremo determine pelo vínculo empregatício entre as plataformas. A projeção prevê redução de 905 mil postos de trabalho somando motoristas e entregadores, caso o vínculo seja reconhecido. Isso representaria uma queda de 48% entre motoristas e 75% entre os entregadores.
A renda também seria afetada. Os motoristas poderiam ter uma redução da massa de renda entre R$ 11,1 bilhões e R$ 16,3 bilhões, o que significaria uma queda entre 20% e 30% em relação à realidade atual. No caso dos entregadores, a redução da massa de renda é estimada entre R$ 2,2 bilhões e R$ 2,5 bilhões, o que seria uma redução de 43% a 49% em relação à atual.
No caso dos consumidores, o vínculo empregatício poderia implicar em um aumento dos preços de corridas em até 32,5% e das entregas, até 25,9%. Por consequência, a demanda teria redução de 30% no transporte por aplicativo e de até 43% nos serviços de entrega. Por sua vez, o retorno das plataformas de mobilidade poderia cair até 32% enquanto as plataformas de entrega teriam seu retorno reduzido em até 46%.
“E o impacto da sociedade seria inegável. Estamos falando de uma retração de R$ 33 bilhões no PIB e uma redução de R$ 2 bilhões de arrecadação dos cofres públicos”, disse Porto.
“Nós, da Amobitec, entendemos que os elementos caracterizadores de vínculo de emprego previstos na CLT não se fazem presentes nas relações desses trabalhadores com as respectivas plataformas. Os motoristas e entregadores são trabalhadores autônomos que exercem suas atividades sem qualquer exigência de habitualidade ou qualquer subordinação, estando sujeitos tão somente às regras de uso dos respectivos aplicativos”, leu durante sua participação na audiência pública.
Para a Amobitec, os profissionais têm “total liberdade” para decidirem quando e onde trabalhar, escolher os trajetos e serviços que preferem e atuar simultaneamente em diversas plataformas sem necessidade de se ter exclusividade.
“As plataformas utilizam a tecnologia para promover eficiência e conectividade na intermediação dos serviços de mobilidade e entrega, não para exercer qualquer controle direto sobre motoristas e entregadores”, completou.
Fabiana Regina Sanovick, diretora jurídica da 99, também deixou claro que os motoristas são autônomos, “contratando os serviços de licenciamento do aplicativo e de intermediação oferecidos pela 99. Os passageiros contratam diretamente as corridas e remuneram os motoristas”, complementou.
Para a advogada da plataforma, “forçar o vínculo empregatício entre motoristas e plataformas pode gerar impactos desastrosos no modelo de negócios, prejudicando motoristas, passageiros e a sociedade”.
Estruturar as relações de emprego no formato da CLT desencadearia uma série de efeitos na dinâmica, como:
– diminuição da oferta de motoristas, uma vez que a perda de flexibilidade afastaria muitos deles;
– aumento dos preços das corridas. Com um número menor de motoristas e maiores custos operacionais, os preços subiriam;
– queda na demanda de passageiros com a alta de preços e com o tempo de espera mais longo.
“O enfraquecimento do setor geraria menos oportunidades de trabalho para motoristas, menos arrecadação de impostos e retrocesso ao acesso de transporte nas periferias”, resumiu Sanovick.
Apesar da fala contra o enquadramento como CLT dos motoristas e entregadores, a advogada reconheceu a importância de se assegurar condições melhores de trabalho e apoiar a criação de uma legislação própria para a categoria. Comentou sobre o PL 12/2024, que propõe o reconhecimento do conceito de trabalhador autônomo por plataforma, que afasta o vínculo trabalhista, mas garante direitos como remuneração mínima e proteção previdenciária. “É uma evolução natural do modelo que pode e deve ser aprimorado, sem comprometer sua essência de flexibilidade e autonomia”, completou.
Já Luciano Benetti Timm, representante da Associação Brasileira de liberdade Econômica, afirmou que não é possível comparar o Brasil com países europeus como Espanha, Alemanha ou França
“A França inova pouco e a Espanha inova muito pouco. Não deveriam ser modelos para o Brasil porque o Brasil não faz parte da União Europeia e muito menos tem os índices de desenvolvimento da Espanha. O Brasil é um país em desenvolvimento tipo Índia, China, Chile. São esses os nossos paradigmas”, disse.
Timm comentou ainda que esses trabalhadores ganham nas plataformas em torno de três salários mínimos, ou seja, eles não estão na camada de hipervulneráveis da população.
“Não estamos falando do extrato mais vulnerável da sociedade – porque está se discutindo a liberdade de escolha. Em termos de tempo de serviço, eles trabalham em média quatro dias por semana. E uma média de 22 horas. Para 85% desses trabalhadores a flexibilidade importa. E 70% dos motoristas são contra a aplicação da CLT. Como aplicar uma coisa contra a vontade das pessoas?”, questiona. “Isso é paternalismo puro. Você vai escolher pelas pessoas quando elas não querem”, completou.
A fala de Fachin
No fim da audiência pública, Fachin disse que pode constatar três consensos mínimos a partir do que ouviu.
O primeiro é a importância e relevância do tema debatido. “Todas as entidades e pessoas que se manifestaram reconheceram a relevância social humana também econômica dessa matéria.”
O segundo ponto é que entidades, pessoas que se manifestaram concordam que não concordam em muitos pontos. “O consenso sobre o que se tem de dissenso é extremamente importante para que um tribunal possa decidir à luz do campo da legítima disputabilidade democrática que é do estado de direito, a solução que lhe parece correta segundo a ordem jurídica vigente”, comentou.
E o terceiro consenso é de que os dissensos devem ser resolvidos dentro da institucionalidade, o que significa reconhecer a importância da institucionalidade no estado democrático de direito para resolver dissensos.
“Fora da institucionalidade, como sabemos, só há violência e barbárie. Esta suprema corte tem como vocação constitucional expressa ser uma instituição guardiã da Constituição da República e esta competência se organiza por diversas ordens de atribuições e obviamente de procedimentos”, completou.
A audiência pública segue na próxima terça-feira, 10, às 9h