Recentemente, o mundo resolveu tomar atitudes contra o mercado extremamente concentrado nas mãos de poucas e enormes plataformas digitais, as big techs. Estados Unidos e Europa dão o caminho para onde vão as novas regulações mundiais sobre concorrência e combate a monopólios, mas o Brasil começa a fazer sua parte também ao publicar, na última quinta-feira, 10, o relatório “Plataformas Digitais: aspectos econômicos e concorrenciais e recomendações para aprimoramentos regulatórios no Brasil”, produzido pela Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda (SRE/MF). A ideia é fazer uma reforma na Lei de Defesa da Concorrência, no Cade e promover a parceria do órgão com ANPD e Anatel.
O seu texto afirma que no Brasil “há um descompasso entre os mecanismos atuais de promoção da concorrência e as novas dinâmicas dos mercados digitais”. Advogados especialistas em direito econômico e digital ouvidos por Mobile Time apontam medidas que são bem-vindas
Para Rafael Pellon, advogado especializado em direito digital, sócio-fundador do Pellon de Lima Advogados e consultor jurídico do MEF, as medidas “são bem-vindas” para atualizar a regulação sobre concorrência “em um mercado que amadureceu nas últimas duas décadas”, quando passou-se de um ambiente competitivo para um cenário com poucas plataformas dominando o mercado digital “não só no Brasil, mas no Ocidente”.
“Assim como em outros mercados regulados e relevantes como o de telecomunicações, a possibilidade de designação de players relevantes e sua regulação de forma mais estrita pelo Estado se alinha com o modelo europeu atual. A sinalização da Fazenda é, então, de seguir os passos dos reguladores europeus em certa medida”, comenta.
A única ressalva para Pellon “é que o Brasil saiba caminhar na tênue linha entre regulação adequada e potencial prejuízo na evolução das plataformas digitais em razão de objetivos de proteção ao público consumidor”. O advogado acredita que é exatamente isso que acontece na Europa, onde as grandes plataformas atrasam lançamentos (como no caso do Meta AI) “e novas versões de seus produtos diante da incerteza sobre sua adequação às novas leis europeias, efetivamente mantendo os europeus em versões mutiladas ou simplificadas de sistemas operacionais móveis, websites e redes sociais.”
Destaques do relatório e comentários
Patricia Peck, sócia e CEO do escritório Peck Advogados, destaca do grupo 1 de propostas, os itens dois (transparência) e sete (cooperação) como relevantes. E, do grupo dois de sugestões, o item um (atualização das ferramentas do Cade).
“São questões essenciais, mas o ponto nevrálgico é como adaptar o modelo de defesa de concorrência para atuar de uma forma mais célere, um rito diferenciado. A tecnologia avança de um modo tão rápido diferente de quando estávamos no século 19, mas agora, a capacidade de ação, diálogo, de construção conjunta e fiscalização, precisam estar numa dinâmica veloz porque o tempo de discussão, do rito ordinário, pode significar que, depois, aquilo não possa mais fazer sentido quando se encerrar”, analisa.
Daniel Becker, sócio do BBL Advogados e especialista em regulação de novas tecnologias, comentou essas propostas e tem algumas discordâncias:
2 – Introduzir obrigações procedimentais e de transparência que poderão ser impostas às plataformas designadas a partir do momento da designação, a critério do Cade.
Para Becker, a proposta pode ter um “forte risco regulatório”. O especialista acha que investigações podem ser onerosas e criar incertezas jurídicas, além de correr o risco de serem “excessivamente punitivas” além de prejudicar o desenvolvimento das plataformas em especial caso haja “imposições desnecessárias que freiem inovações”.
7 – Criar um fórum de cooperação interinstitucional entre o Cade e outros órgãos federais (ex.: Anatel, ANPD, Senacon), para temas relacionados a mercados digitais.
Ao contrário de Peck, Becker aponta esta proposta como inócua e que pode ser “meramente formal” e que não terá impacto prático real para as plataformas. Para o advogado, “há sobreposição, disputa de competência e alta politização dos agentes envolvidos”.
Há também a primeira do segundo grupo de propostas:
1 – Atualizar as ferramentas de análise antitruste, para aprimoramento contínuo do arcabouço analítico utilizado pelo Cade para identificar e avaliar riscos competitivos, incluindo novas teorias do dano.
Já esta proposta foi considerada por Becker como “realista, mas arriscada”.
“A atualização das ferramentas de análise antitruste para incluir novas teorias do dano é algo arriscado, para Becker. É tecnicamente viável, mas as novas teorias podem ser aplicadas de maneira imprevisível e criar um ambiente de incerteza para as plataformas. “Isso pode dificultar estratégias de expansão e inovação, bem como alimentar o já alto risco para investimento estrangeiro no País”, resume.
Contexto internacional de políticas antitruste
Os Estados Unidos propuseram o fatiamento do Google para reduzir seu poder de concentração de mercado. A ferramenta Google Search seria separada da loja de aplicativos, do sistema operacional Android e do navegador Chrome.
Sob uma perspectiva geral, o governo Biden focou seus esforços nos mercados digitais modernos e em práticas como os “dark patterns”, artifícios de design que enganam e confundem os usuários.
Na União Europeia, o Ato de Mercados Digitais (DMA) caracteriza seis big techs como gatekeepers, plataformas digitais dominantes no segmento digital. Elas deverão cumprir regras para facilitar a inovação, além de dar mais poder de escolha aos usuários finais. Há ainda uma série de investigações antitruste contra plataformas digitais, como a quebra de monopólio do Apple Pay em dispositivos iPhone – que restringia aplicativos de carteiras digitais externas a usarem o NFC em iPhone e Apple Watch.
E, na Austrália, as lojas de aplicativos são o ponto principal para uma discussão sobre concorrência, concentração de mercado, mas também questões de combate ao crime e prejuízos aos consumidores.
Becker avalia a conjuntura internacional de processos legais em andamento contra grandes empresas como Google e Apple como pilares para estabelecer “precedentes importantes” e estimular mais ações regulatórias e a concorrência no mercado.
“Ao mesmo tempo, órgãos reguladores como o Departamento de Justiça (DOJ) e a Comissão Federal de Comércio (FTC) estão se preparando para desafios futuros, revisando diretrizes de fusão e fortalecendo suas ferramentas analíticas para enfrentar práticas anticompetitivas. Esse momento estratégico, somado à demanda pública e ao alinhamento político, tornou o momento atual crucial para a aplicação de regulações antitruste no setor de tecnologia”.
Aumento de competências do Cade
Peck salienta que mais do que aumentar os poderes do Cade, o principal é pensar o aparelhamento do órgão para fazer frente ao tamanho do desafio em se lidar com novas questões concorrenciais trazidas pelas big techs. A advogada lembra ainda que esse tipo de concentração de poder precisa ser “muito bem avaliado” dentro da lógica de negócios desses empreendimentos “porque possuem uma interdependência grande em que não é tão simples apenas determinar o fatiamento de uma empresa, mas de que maneira se estimula uma concorrência saudável, com práticas de mercado que não gerem esse efeito negativo.”
Nathalie Frias, sócia da área de concorrência do Almeida Prado & Hoffmann Advogados, conta que o Cade já lida com questões relacionadas à economia digital há tempos, mas somente pontualmente, caso a caso. E, como o tema é complexo, será essencial haver aumento de competências técnicas e de recursos. “Por isso, um reforço no aparato de ferramentas do Cade seria importante para adequar a autoridade à realidade digital.”
Frias aposta que a integração entre Anatel, ANPD e Cade, se for bem executada, “o trio será fortalecido, permitindo uma abordagem multidimensional na regulação de plataformas com grande relevância e impactos na sociedade”.