Nesta terça-feira, 10, teve sequência a audiência pública que avalia se há vínculo empregatício entre os motoristas e entregadores por app e suas respectivas plataformas. Após ouvir 44 pessoas durante a primeira sessão na segunda, hoje foram ouvidas mais 14, totalizando 58 expositores, entre sindicatos, empresas, entidades, juristas e especialistas.
A audiência do Recurso Extraordinário (RE 1446336) tem como relator o ministro do STF Edson Fachin, e envolve discussões sobre as transformações nas relações de trabalho em decorrência das plataformas digitais. O caso, que trata de uma ação apresentada pela Uber, foi reconhecido como de repercussão geral (Tema 1.291). Isso significa que a tese jurídica estabelecida pelo STF no julgamento será aplicada a todos os casos semelhantes que tramitam no Judiciário brasileiro.
Nesta terça, a primeira pessoa a falar foi o desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região Francisco Ferreira Jorge Neto. Para ele, as normas estabelecidas na CLT possuem os elementos que podem caracterizar o vínculo como uma espécie de trabalho. “Não há Uber sem motorista. É uma empresa que explora serviços de transporte. É uma nova forma de um serviço antigo, via plataforma, via trabalhador 4.0.”
Em seguida, Meilliane Pinheiro Vilar Lima, representante da parte recorrida, Viviane Pacheco Câmara, subiu ao púlpito e declarou que os fatos apresentados no processo decorrem de uma relação de trabalho e, por isso, considera que a justiça trabalhista conta com competência para analisar este e outros casos semelhantes.
“O ordenamento jurídico brasileiro sempre esteve apto a proteger o trabalho prestado por motoristas e entregadores em empresas de plataforma digital. Especialmente por meio da constituição humanista de 1988, que oferece aos empregados autônomos um patamar civilizatório mínimo de proteção”, argumentou.
O que diz a Uber ao STF
Já Caroline Perônio Arioli, representante da Uber, disse que a Uber é uma empresa de tecnologia, e defendeu que as obrigações de vínculo empregatício previstas na CLT não são aplicáveis, pois os motoristas possuem a liberdade para escolher quando e onde trabalhar.
“Em algum momento de suas vidas, 5 milhões de brasileiros geram renda com o aplicativo. Isso equivale a R$ 140 bilhões que foram repassados pela plataforma aos motoristas nos últimos 10 anos no Brasil”, informou.
Ela afirmou que o perfil do motorista de aplicativo é tão variado quanto o da população brasileira, englobando aqueles que possuem emprego, mas que buscam reforçar o orçamento da residência, o aposentado, o desempregado que busca uma recolocação e etc. “O que une esses perfis variados? A liberdade de escolher onde, quando e quanto se ativar na plataforma. Uma liberdade que é incompatível com as obrigações de um vínculo de emprego como previsto hoje na CLT”, argumentou.
Por fim, ela acrescentou que a Uber propõe um aperfeiçoamento da regulação para priorizar a proteção previdenciária e social dos motoristas. Assim, seria possível dar continuidade à flexibilidade do modelo sem causar prejuízos em sua livre iniciativa e funcionamento.
Pesquisa
Após Caroline, Victor Callil, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), apresentou a pesquisa Mobilidade Urbana e Logística de Entregas. Realizada em 2024, o estudo mostra que o número de motoristas e de entregadores cresceu desde 2022. São cerca de 447 mil motoristas (um aumento de 35%), e 70 mil entregadores (com um aumento de 18%). Foi analisada um amostra de 1,5 mil motoristas e 1,5 mil entregadores, sorteados através de dados na base das próprias empresas.
Essa é a segunda edição da pesquisa, feita em parceria com a Amobitec, e revelou que a maioria desses trabalhadores são homens entre 20 e 50 anos, com os entregadores sendo mais jovens. Grande parte dessas pessoas possuem o ensino médio completo, se autodeclaram como pretos ou pardos, e têm renda familiar de até cinco salários mínimos.
Dieese: motoristas dependentes das plataformas
Adriana Marcolino, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), relatou que, em comparação aos empregados do setor privado tradicional, os trabalhadores de plataformas digitais enfrentam jornadas semanais mais longas e contribuem menos com a previdência social.
Enquanto os trabalhadores de plataformas contribuem com apenas 35,7%, os demais profissionais no mercado de trabalho contribuem com 60,8%.
“Os motoristas de aplicativo de transporte de passageiros (excluindo aqueles que dirigiam táxi) e os entregadores por aplicativo tinham um grau de dependência das plataformas bastante relevante. 97% e 84%, respectivamente, afirmaram ser o aplicativo que determinava o valor a ser recebido por cada tarefa realizada”, disse Marcolino.
Propaganda x realidade
Ricardo Colturato Festi, da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (Abet), ressaltou que o caso em discussão é um problema global, e que as plataformas digitais muitas vezes exploram lacunas na legislação. As empresas promovem a individualização das atividades laborais, o que acaba por transferir os custos do trabalho para os motoristas, impondo jornadas exaustivas sem descanso, e, assim, a precarização do trabalho.
“Jornadas extensivas e sem descanso. Essa é a realidade do trabalho em plataformas digitais. Diferentes das imagens positivas de propagandas pela ideologia da economia do compartilhamento, o que temos encontrado em nossas pesquisas de campo é a velha e conhecida reprodução da precarização do trabalho. Não se trata de trabalho autônomo, mas da mobilização da reprodução da informalidade e dos falsos autônomos. É uma ilusão achar que os trabalhadores têm liberdade de decidir sobre sua jornada e de escolher quando, onde, quando e quanto trabalhará”, criticou.
Roseli Aparecida Figaro, professora e coordenadora do centro de pesquisa em comunicação e trabalho da Universidade de São Paulo (USP), informou que as plataformas de transporte digitais, como Uber e afins, coletam dados das cidades e dos usuários, usando-os como ativos para valorizar o mercado. “Todas as empresas devem declarar as informações de seus negócios aos órgãos públicos. Qual o negócio da Uber se todos os trabalhadores deixarem de usar o seu aplicativo?”, perguntou Roseli.
Segundo ela, as empresas contemporâneas se autodenominam plataformas intermediadoras, levantando a seguinte questão: “As empresas de tecnologia realmente vendem tecnologia?”
Ela acrescentou ainda que, apesar dessas empresas recorrerem à Constituição para reivindicar segurança jurídica e benefícios, elas não se preocupam em assegurar direitos aos trabalhadores.
Experiências internacionais
Da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o pesquisador do departamento de Sociologia Murilo Van der Laan mostrou que “desde a experiência da União Europeia, a tendência da jurisprudência na região é de rechaçar a designação que as plataformas fazem dos seus trabalhadores como autônomos.”
Essa experiência resultou na diretiva que orienta a melhoria das condições trabalhistas em plataformas digitais. Nos países que trataram da questão do vínculo empregatício, como Espanha, França, Suíça, Alemanha, Holanda, Itália, Reino Unido e Hungria, a tendência é que a ampla maioria das decisões sejam contrárias à classificação feita pelas plataformas sobre trabalhadores autônomos.
Para Van der Lann, as plataformas devem tornar mais transparentes a forma como controlam seus trabalhadores.
Divisão de riscos
Ricardo Colares, advogado trabalhista e pesquisador da Universidade de Fortaleza (Unifor), salientou que o “risco do negócio da Uber tem sido dividido com o trabalhador de forma injusta, pois a ele cabe toda a manutenção do veículo, combustível, e à Uber cabe a destinação das corridas e a gerência dos índices de satisfação dos seus usuários apenas, podendo a todo e qualquer momento descredenciá-lo ou manter o trabalhador na sua plataforma.”
Ana Carolina Paes Leme, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mostrou que as plataformas digitais utilizam práticas antissindicais, além da manipulação da jurisprudência e a desinformação sobre o vínculo de emprego. Essas ações levaram os motoristas a ficarem em dúvida sobre a sua própria situação profissional nas plataformas, fazendo com que não tenham clareza se são parceiros, microparceiros, terceirizados ou empregados.
Airbnb
Por fim, Murillo Carvalho Sampaio, professor associado da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e juiz do trabalho, coordena desde 2018 a pesquisa “Assalariados Digitais”. O professor fez uma comparação entre o Airbnb com o modelo das plataformas de transporte digitais.
“Vejam que, naquele modelo, é o cliente e o proprietário do imóvel que se escolhem entre si. Naquele modelo há uma liberdade de escolha. No caso da empresa em discussão deste processo (Uber), não há liberdade de escolha. O cliente não escolhe o motorista, e o motorista não escolhe o passageiro.”
Murilo ainda reforça que a CLT contempla, sim, tipos de trabalho flexíveis, já que desde 1943 se admite trabalhadores com jornada livre, que não precisam bater ponto e que ganham por resultado.