Especialistas e profissionais do mercado de criptomoedas veem o lançamento da Libra e da carteira digital do Facebook com bons olhos. O otimismo se explica por se tratar de um player forte associado a outros igualmente fortes do mercado de pagamento “tradicionais”, como Visa e Mastercard, o que dá respaldo à criptomoeda de uma forma ampla e deverá incentivar o seu uso por camadas da população que não estão habituadas à moeda digital, popularizando-a e ampliando ainda mais seu uso e sua penetração. “O Facebook vai levar as criptomoedas para o mainstream”, diz Christian Aranha, fundador da incubadora Entropia e do site BitDigest. “Quem tinha medo de criptomoeda agora ganha o endosso do Facebook. Isso é muito forte e vai aumentar enormemente o interesse pelas criptomoedas em geral. Hoje mesmo [ontem, dia 18] o bitcoin já subiu”, relata.
Guilherme Horn, conselheiro da ABFintechs, empreendedor e investidor-anjo, é um entusiasta. “Acredito que a receptividade será muito boa à entrada da Libra. Temos uma carência grande de serviços bancários, muita gente desbancarizada, e o Facebook tem uma penetração grande. Acredito que a junção desses fatores fará com que a criptomoeda e a carteira digital dele poderá alcançar essas pessoas. Há uma tendência a tornar a Libra popular, mas vai depender da sua execução. Mas eles têm um apelo forte e isso deve ajudar a disseminar no Brasil”, projeta Horn.
Daniel Coquieri, COO da corretora nacional BitcoinTrade, também vê com bons olhos a chegada da Libra. Para ele, o fato de ser um grande player, unindo-se a outras grandes empresas, mostra que essas companhias estão “enxergando oportunidades inovadoras para o setor financeiro por meio de criptomoedas. Estou otimista porque a Libra vai acelerar o mercado de criptomoedas e fazer com que as agências reguladoras pensem em regras para as moedas digitais.”
Por outro lado…
O “pé atrás” fica por conta da regulamentação. A carteira digital Calibra será lançada antes, no primeiro semestre de 2020. Isso significa dar tempo para que os testes (conhecidos, no jargão blockchain, de testnet) sejam rodados e, enquanto isso, os países estudem a melhor forma de regulamentar as criptomoedas. “O que pude perceber é que os lados começam a se preocupar com esse projeto da Libra porque esta pode mexer profundamente com as estruturas monetárias globais. Isso vai transformar a maneira como as pessoas transferem dinheiro entre países e compram. Com a penetração global que o Facebook tem, pode haver um choque com as moedas fiats [moedas fiduciárias], como o Dólar e o Euro, e com as moedas dos países como um todo”, diz Coquieri.
Para os especialistas ouvidos por Mobile Time, os países precisam resolver a questão da regulamentação. Porém, ela não é condição para que a Libra comece a circular. A discussão entre governos e Calibra deverá acontecer para que as moedas locais não percam seu poder de compra e não se desvalorizem.
“Trata-se de um amadurecimento do mercado. Só que, do outro lado, você tem um risco a respeito de como as autoridades vão tratar o assunto, uma vez que você está entrando numa fronteira perigosa. A criptomoeda pode ser vista como uma ameaça ao Dólar ou ao Euro, por exemplo. Mas isso é algo muito longe de acontecer, uma hipótese remota. Acho que, no fim, o que vai acontecer será uma regulamentação pró-mercado nos países como um todo”, avalia Coquieri.
“O receio dos bancos centrais é que, se todo mundo começar a usar a Libra para tudo, as nações terão restrições em exerver suas políticas monetárias”, comenta Carlos Gamboa, co-fundador da Fisher Venture Builder.
No Brasil
No caso brasileiro, Horn explica que os reguladores do País costumam ter uma pré-disposição a aceitar as novidades do mercado. “Eles são referência ao fomento de inovação e competitividade”, explica. Porém, para o conselheiro da ABFintechs, nem sempre é possível acelerar, já que eles têm um pipeline e prioridades que nem sempre casam com o momento. “De qualquer forma, não é necessário ter uma regulamentação voltada para as criptomoedas. A Libra pode entrar em operação no País se adaptando à regulamentação atual.
Para Aranha, o Brasil será beneficiado com a entrada da Libra porque o brasileiro ainda não está familiarizado com a moeda digital e, com o Facebook por trás, o público terá a oportunidade de experimentar a criptomoeda. “Vai mudar para o Brasil porque estamos mais atrasados. Aqui usamos menos criptomoeda. E as pessoas vão começar a usar pelo WhatsApp, pelo Messenger do Facebook e isso vai fazer com que o Brasil avance nesse quesito”.
Stablecoin
Vale explicar que a Libra não é uma criptomoeda nos moldes da Bitcoin, por exemplo, que flutua de valor de acordo com a especulação. A criptomoeda do Facebook é uma stablecoin, ou moeda estável, e funciona da seguinte maneira: para cada stablecoin produzida, o consórcio de empresas que estão ao lado da rede social deverá reservar US$ 1 ou 1 euro. No caso da Libra, seu valor está vinculado a uma cesta de moedas que são depósitos bancários e títulos do governo de curto prazo de uma série de moedas internacionais historicamente estáveis, incluindo o dólar, a libra esterlina, o euro, o franco suíço e o iene. A Associação Libra mantém esta cesta de ativos e pode alterar o saldo de sua composição, se necessário, para compensar grandes flutuações de preços em qualquer moeda estrangeira, de modo que o valor de uma Libra permaneça consistente.
“Você cria um lastro: para cada Libra que eu emitir, deixo um dólar guardado no cofre. Quando a Libra cair, tenho dólar guardado para garantir o valor. E, na hora que sobe, posso emitir mais criptomoedas. Ou seja, compro e vendo para manter um preço estável”, resume Aranha.
Neste caso, a moeda estável precisa ser controlada por meio de auditorias. “Precisamos de garantias de que esse dinheiro guardado realmente existe”, explica Aranha.
Blockchain privada
Outro ponto importante é que a Libra será uma moeda baseada na tecnologia blockchain privada, ou seja, apenas os membros autorizados da Associação Libra terão acesso, ao contrário, por exemplo, do Bitcoin, cujo blockchain é descentralizado por completo, o que aumenta a sua segurança, mas a torna uma tecnologia mais lenta na sua transação.
Para Tatiana Revoredo, representante do European Law Observatory on New Technologies no Brasil e especialista em blockchain, a segurança contra ataque hacker está na criptografia e na descentralização da blockchain. “E, nesse ponto, a Libra, no momento, pode não ter uma segurança tão robusta quanto um bitcoin. Porém por ser uma blockchain privada, isso significa que será mais rápida do que as públicas. Mas, pelo o que li no white paper, a ideia é transformar, com o tempo, em blockchain pública e descentralizada”.
Para Revoredo, o Facebook fez uma espécie de colcha de retalhos com os melhores pontos de diferentes blockchains, juntou e criou a sua.
Outro ponto abordado pela especialista foi que a Calibra e, por sua vez, a Libra, deverão ser uma espécie de WeChat do Ocidente, ou seja, um super-app capaz de resolver todos os problemas do usuário em um só lugar. “A diferença é que na China eles não usam blockchain.”
Para Aranha, a grande revolução será chegar na agilidade que uma transação de pagamento exige numa criptomoeda usando a tecnologia blockchain, que ainda é lenta. “Atualmente criptomoeda é um bem. É como ação. Ou seja, no Brasil, quem tem criptomoeda precisa declarar no Imposto de Renda. Não existe criptomoeda para pagamento. Então, o sujeito que compra um cafezinho precisa declarar no IR dele?”
Mas Revoredo explica que a blockchain é uma tecnologia que ainda não atingiu sua maturidade, e comparou com a inteligência artificial:
“As blockchains ainda estão em desenvolvimento. É uma tecnologia que não atingiu sua maturidade. Se compararmos com a maturidade da inteligência artificial: ela nasceu nos anos 1950 e, nos anos 1990, achavam que ela estava madura o suficiente. Porém apenas hoje em dia ela está entregando o que prometeu. A blockchain estaria numa maturidade dos anos 1990, se comparada à IA. A latência precisa ser melhorada. Por conta disso, a Libra deverá começar por uma blockchain privada, para controlar quem são as pessoas que podem escrever na rede. Apesar de a Libra ser um código aberto, os participantes têm controle para que lado vai a blockchain. E, no caso, cada parceiro tem apenas 1% desse controle”.