O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) está usando a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) para desrespeitar uma outra norma, esta mais antiga: a LAI (Lei de Acesso à Informação). Em leitura equivocada, usando o pretexto da privacidade, a administração federal tem conseguido impedir o acesso à informações sobre agentes públicos e o exercício de suas atividades, o que é inconstitucional.

A denúncia foi feita por deputados, em audiência pública na Câmara promovida pela Comissão de Fiscalização Financeira, e também em um manifesto assinado por 28 entidades da sociedade civil. “A Constituição reconhece, simultaneamente, o direito à informação e o direito à privacidade como direitos fundamentais de qualquer cidadão. Entretanto, para aqueles que decidem seguir uma carreira pública e assumir posições de poder, ou para aqueles que decidem se relacionar mais diretamente com a administração pública, a Constituição estabelece um dever de transparência e de prestar contas que se sobrepõe à esfera de privacidade”, diz o texto do manifesto.

De acordo com o deputado Elias Vaz (PSB/GO), que pediu o debate na Câmara, trata-se de um artifício que o governo está usando para não disponibilizar informações importantes, o que estaria atrapalhando inclusive o trabalho parlamentar. “Esta postura do governo dificulta nossa fiscalização. Não tem jeito, precisamos ter acesso a certos dados, como o CPF. Um exemplo claro disso são conluios em processos licitatórios. Descobrimos casos desse tipo dentro do Exército, mas precisamos do CPF para chegar ao responsável”, contou Vaz, à reportagem do Mobile Time.

Um levantamento feito pelo jornalista Eduardo Goulart, para a Fiquem Sabendo, agência de dados independente especializada na LAI, identificou 79 pedidos de acesso à informação feitos a órgãos públicos federais e negados até a terceira instância com base na LGPD. O estudo mostrou que, em 40 casos, os órgãos foram derrotados em sua interpretação da LGPD após os recursos e obrigados a fornecer informações, ainda que parcialmente. “Os dados pessoais já estão definidos na LAI. A LGPD tem sido utilizada, na prática, de maneira genérica: ‘não vamos disponibilizar porque isso viola a lei’. Ora, juristas entendem que as duas leis devem ser respeitadas, que não se sobrepõem, e que não devem ser usadas para diminuir a eficácia uma da outra”, disse Léo Arcoverde, cofundador e diretor da Fiquem Sabendo. Segundo ele, essa prática iniciada pelo governo federal está se espalhando pelo País e já há casos nas esferas estaduais.

Duas leis, duas medidas

São duas leis diferentes, que deveriam se complementar. A LAI, que completou 10 anos na última quinta-feira, 18, garante a transparência de dados públicos à população e determina que órgãos públicos atendam pedidos de informação feitos por qualquer pessoa. Já a LGPD passou a vigorar em setembro do ano passado e tem o objetivo de proteger direitos fundamentais de liberdade, privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade. De acordo com a CGU (Controladoria Geral da União), que é responsável pelo cumprimento da LAI, 99,5% das demandas teriam sido respondidas até hoje.

“Ambas as normas tratam de direitos associados ao indivíduo. Elas falam a mesma língua, mas em aspectos diferentes. Em muitos casos os gestores públicos ficam em dúvida se devem publicar determinada base de dados por conta da transparência, ou se estes dados devem ser mantidos sob sigilo. Isso é normal, pois a LGPD é uma lei ainda muito nova”, pontuou Miriam Wimmer, diretora da ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), para o Mobile Time. Segundo ela, ainda não existe uma interpretação formal da ANPD sobre a relação entre as duas leis.

Wimmer afirmou que a própria LAI define quando a informação é de interesse público, quais critérios devem ser considerados e quando se trata de publicizar a informação. “Há um desafio interpretativo. Quando o interesse público é grande o suficiente para justificar uma diminuição das garantias da intimidade da vida privada? Isso acontece muitas vezes em vencimentos de servidores públicos, que tem o seu salário publicado”.

Má fé

O deputado Kim Kataguiri (DEM/SP) reclamou da dificuldade imposta pelo governo federal para parlamentares obterem informações cruciais ao seu trabalho. Ele afirmou não acreditar em problemas de interpretação da LGPD ou equívocos, e sim em má fé da atual administração.

“O processo que absolveu o ex-ministro da Saúde. Eduardo Pazuello, colocou seus dados pessoais protegidos por 100 anos. E não pudemos ter acesso à conduta de um ministro de Estado”, lembrou Léo Arcoverde, da Fiquem Sabendo. Este sigilo máximo previsto por um século tem sido usado de maneira irrestrita pelo governo, alegaram as entidades, durante a audiência na Câmara.

Miriam Wimmer acredita que muitos dos dilemas colocados aqui decorrem da própria LAI e já existiam antes da LGPD, que teria “trazido uma camada a mais neste debate”.

“Não acho que haja necessidade de uma adequação da LGPD. Minha visão é a de que as normas sejam lidas em conjunto e interpretadas de maneira sistemática”, finalizou.

 

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