Na última sexta, 17, dia em que foi publicada a Medida Provisória 954/2020, que obrigou as operadoras de telecomunicações entregarem ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) as bases completas, com nome, número de telefone e, endereço e CPF de todos os usuários de telefonia móvel e fixa do Brasil, o próprio IBGE já encaminhou à Anatel uma minuta de Instrução Normativa normatizando o processo e a entrega dos dados. A minuta é extremamente simples, com apenas duas páginas. De novidade para além do que está na Medida Provisória, diz apenas que os dados de pré-pago, se não existirem, estão dispensados, estabelece que os dados devem ser entregues em “um drive” do IBGE e que o ponto de contato é com a equipe técnica do instituto. O documento, assinado pela presidente do instituto, Susana Cordeiro Guerra, diz ainda que os dados se prestarão a dar “suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”, sem especificar exatamente a PNAD, como vinha sendo discutido com a própria agência nas manifestações anteriores. Na comunicação à imprensa, contudo, o IBGE citou o uso para a PNAD-Contínua e para a PNAD-Covid, referente especificamente à pandemia.
A Anatel analisou a instrução normativa e, em deliberação unânime do conselho diretor nesta segunda, 20, se posicionou de maneira muito cautelosa. No voto de Leonardo Euler, presidente da Anatel que relatou a matéria, ele lembra que até a publicação da MP o compartilhamento dos dados na amplitude desejada pelo IBGE não guardava previsão legal. A agência, até então, havia analisado e dado a anuência para o compartilhamento daquelas informações que compõem a base da Pesquisa Anual de Satisfação, que além de mais limitada em termos amostrais, não inclui endereços, como desejava o IBGE. A comunicação do instituto apenas havia afirmado que a medida provisória já teria sido objeto de manifestação da Anatel e do MCTIC.
Para a Anatel, sem entrar no mérito sobre a legalidade ou não da Medida Provisória, “não está a se falar de informações insignificantes, mas da chave de acesso individual a milhões de pessoas, com um alto valor não só para políticas públicas, mas também para práticas comerciais que – em determinadas vertentes – causam inclusive distúrbios na vida diária”. Vale lembrar que a OAB, o PSB, o PSDB e o PSOL entraram com ações de inconstitucionalidade contra a Medida Provisória.
A manifestação do conselho da Anatel ao IBGE alerta ainda que “repousa sobre os detentores desses dados um dever claro que eles sejam usados somente da forma pretendida, assegurada a redução de riscos de seus vazamentos ou manipulação por terceiros” e que há a necessidade de “extraordinária responsabilidade, tendo-se em conta o caráter constitucional da proteção ao direito fundamental da privacidade e intimidade (…), bem como da inviolabilidade dos dados telefônicos e telemáticos”. “Do exposto, reforça-se as preocupações e o dever de cautela ressaltados nesta manifestação, bem como a responsabilidade do órgão destinatário das informações”, diz a Anatel, lembrando que em qualquer outra circunstância estes dados só poderiam ser obtidos por meio de decisão judicial. “Logo, a IN e os atos concretos que dela sejam desdobramentos possivelmente passarão por testes perenes e devem bem respondê-los”. A agência alerta que a cultura de proteção da privacidade “ainda é incipiente no Brasil” e que a crise da Covid-19 “parece estar atuando como um estímulo nessa direção”, mas que em um “cenário em que a consciência dos indivíduos a respeito do tema é pontual, cabe com primazia ao Poder Público protegê-los em diversas dimensões cujos reflexos podem ser muito mais permanentes que a atual crise”.
Recomendações
A Anatel faz então uma série de recomendações ao IBGE como “forma a reduzir o grau de abstração dessas considerações”, tais como:
- A sólida instrumentalização da relação jurídica que será estabelecida entre o IBGE e cada uma das prestadoras de serviços de telecomunicações demandadas;
- A delimitação específica da finalidade do uso dos dados solicitados;
- A limitação das solicitações ao universo de dados estritamente necessários para o atingimento da finalidade;
- A delimitação do período de uso e da forma de descarte dos dados; e
- A aplicação de boas práticas de segurança, de transparência e de controle.
Por fim, a Anatel lista uma série de normas e instrumentos legais que o IBGE precisa seguir, no entendimento da agência: “o compartilhamento objeto dos instrumentos supramencionados deve se dar observando-se os princípios e termos da Constituição Federal, da Lei nº 9.472/1997 – Lei Geral de Telecomunicações (LGT), da Lei nº 12.527/2011 – Lei de Acesso à Informação (LAI), da Lei nº 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), do Decreto nº 10.212/2020, bem como os expressos no Parecer n. 242/2020/PFE ANATEL/PGF/AGU, da Procuradoria Federal Especializada da Anatel (PFE/Anatel), e no presente Voto”. O IBGE afirma estar em conformidade com a LGPD, e cita ainda a Lei nº 5.534/68, que estabelece que toda pessoa que esteja sob a jurisdição brasileira é obrigada a prestar as informações solicitadas pelo Instituto.
A instrução normativa do IBGE está disponível aqui e o voto que fundamentou a decisão do conselho da Anatel está disponível aqui.