|Mobile Time Latinoamérica| A discussão sobre a regulamentação dos trabalhadores de apps, especialmente motoristas e entregadores, se intensificou na América Latina em 2024. Seja por iniciativa do poder executivo, do legislativo ou do judiciário, Brasil, Colômbia, México e Uruguai trilham caminhos diferentes e avançam na direção de assegurar direitos a esses profissionais – movimento cujo pioneirismo coube ao Chile, ainda em 2022, no embalo pós-pandemia.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou em dezembro o julgamento de um processo sobre a existência ou não de vínculo empregatício entre Uber e motoristas, cujo desfecho terá repercussão geral e pode afetar outras plataformas. Há também um projeto de lei proposto pelo governo federal, mas que está parado em uma comissão da Câmara dos Deputados.
No México, a presidente Claudia Sheinbaum, recém-empossada, conseguiu aprovar uma reforma trabalhista que abrange os trabalhadores de apps.
Na Colômbia, governo e empresas chegaram a um acordo em torno de um projeto de lei para regular o trabalho dos entregadores.
No Uruguai, um projeto de lei proposto pelo poder executivo para regular motoristas e entregadores foi aprovado na Câmara em setembro e seguiu para o Senado.
Tudo isso aconteceu este ano e pode contribuir para acelerar a discussão em outros países da região nos quais também há projetos de lei similares em tramitação, como Argentina e Costa Rica.
A necessidade de atualização das leis
A maioria das leis trabalhistas da América Latina foram criadas em meados do século 20. Vieram a partir da industrialização tardia da região, junto com o aumento da população urbana, do fortalecimento do movimento sindical e do conceito de estado do bem estar social.
Embora haja variações em cada país, de forma geral essas leis garantiram direitos básicos para os trabalhadores, como salário mínimo, limite de horas diárias para a jornada de trabalho, previdência social, férias remuneradas etc.
Os atores econômicos e as relações de trabalho na época em que essas leis foram criadas eram completamente diferentes. Com a digitalização da economia nas últimas décadas, vivemos uma conturbada fase de transição. Ainda existem, sim, relações de trabalho para as quais as leis do século passado continuam fazendo sentido. Mas existe também uma nova categoria de trabalhadores, na chamada “gig economy”, que não se sentem vinculados a um patrão específico, ou se entendem como patrões de si próprios, trabalhando para várias plataformas digitais ao mesmo tempo, por muito mais horas diárias que a média do resto da população, e sem qualquer direito trabalhista ou seguridade social.
Na falta de uma regulação específica para essa nova forma de trabalho, surgiu uma zona cinzenta na qual cresceram os apps de entrega de comida e de transporte de passageiros em carros particulares. Eles se descrevem como plataformas de tecnologia que prestam um serviço a uma massa de profissionais autônomos, atuando como intermediadores entre oferta e demanda, pelo que cobram uma comissão sobre o valor faturado.
O mesmo processo de digitalização que propiciou o surgimento de apps como Uber, Rappi e iFood, digitalizou diversos setores da economia e empurrou milhões de pessoas para o desemprego, gerando justamente a mão de obra disponível para a “gig economy”.
“É um dos poucos trabalhos ‘autogerados’ que existem no mundo. Ou seja, se eu quero trabalhar, não preciso enviar meu perfil para ninguém, nem esperar ser chamado; basta baixar o aplicativo e pronto. Isso precisa ser protegido”, defende José Daniel López, diretor da Alianza In Colombia, entidade que representa os aplicativos.
O fato de motoristas e entregadores terem liberdade para trabalharem quando quiserem, onde quiserem, por quantas horas quiserem, e para quantas plataformas quiserem serve de argumento para as empresas alegarem que não haveria vínculo empregatício. É uma questão controversa que invariavelmente está sendo levada a tribunais de Justiça do mundo inteiro, com decisões variadas.
Em contraposição, Renan Kalil, coordenador nacional de combate às fraudes nas relações de trabalho do Ministério Público do Trabalho do Brasil, argumenta que a exclusividade nunca foi critério para reconhecer vínculo empregatício. “Há profissões hoje em dia que são famosas por terem pessoas trabalhando para mais de uma empresa. É o caso de professores que trabalham em mais de uma escola; profissionais de saúde; vigilantes. Isso nunca foi um obstáculo para reconhecer o vínculo.”
Por outro lado, muitos dos trabalhadores de apps não parecem interessados em estabelecer esse vínculo. “O mundo do trabalho está mudando, e as noções e os imaginários sociais dos trabalhadores também. Há muitos jovens hoje que estão confortáveis com a flexibilidade. Isso se expressa nas plataformas: eles não são motoristas de apenas um, mas de dois ou três aplicativos. E alguns não se importam de trabalhar até 14 horas por dia”, comenta Alejandra Dinegro, advogada trabalhista e presidenta do Observatório das Plataformas Digitais, no Peru.
Paralelamente, a organização sindical dos trabalhadores, que teve um papel central na conquista de direitos ao longo dos séculos 19 e 20, sofre um enfraquecimento nos dias de hoje e não conseguiu se estabelecer com a mesma força de antigamente dentro dessa nova categoria de trabalhadores. Muitos desses profissionais se entendem como empreendedores, e rejeitam a organização sindical. Além disso, em alguns países da América Latina, como Colômbia, Argentina e Chile, boa parte da categoria é composta por imigrantes venezuelanos, cuja vulnerabilidade dificulta a sua organização política.
A falta de sindicatos fortes é um obstáculo no processo de negociação de novas leis em muitos países da América Latina. “É uma categoria que às vezes é contrária à ideia de sindicato. Então quem são os legítimos representantes da categoria?”, questiona Nina Desgranges, antropóloga e pesquisadora do ITS-Rio, instituto brasileiro que estuda a economia digital.
A aversão desses trabalhadores à organização sindical deixa indignada Sol Correa, advogada do Sindicato dos Motoristas de Aplicativos do Estado do Pará e da Força Sindical, no Brasil: “Muitos motoristas vêm falar comigo que não gostam de sindicato. E eu respondo: as empresas também não gostam”. E relata: “Já tive muitos motoristas falando mal do sindicato nas minhas redes sociais. E depois que são bloqueados pela plataforma aparecem no sindicato pedindo desculpas.”
Para Alejandro Avilés, advogado trabalhista no México, é essencial defender o direito de sindicalização desses trabalhadores, antes de mais nada ou de qualquer outro direito que venha a ser estabelecido por uma nova lei.
Preço-base, limite de jornada e previdência
Parte das discussões com relação a reformas trabalhistas gira em torno da necessidade de adaptação de alguns direitos tradicionais dos trabalhadores para a realidade das plataformas digitais.
Na impossibilidade de se estabelecer um salário mínimo, por exemplo, discute-se determinação de um preço-base para a remuneração de motoristas e entregadores, seja por hora trabalhada ou por quilômetro rodado. No caso de hora trabalhada, uma das divergências é se deveria ser computado o tempo em que o trabalhador fica logado na plataforma aguardando receber uma tarefa.
O projeto de lei que tramita no Congresso brasileiro prevê uma remuneração mínima de R$ 32,10 por hora trabalhada, o equivalente a US$ 5,22 pela cotação atual. O tempo é contado a partir do momento em que o motorista pega o passageiro e termina quando chega ao destino.
Outra possibilidade é determinar o percentual do valor da corrida que deve ficar com a plataforma e o percentual que deve ser repassado ao trabalhador.
Também se discute a importância de definir um limite de jornada. No projeto brasileiro, seria de oito horas por dia para os motoristas, podendo chegar a 12 horas, desde que haja intervalos para descanso.“Estamos falando de segurança viária. Motoristas não podem trabalhar até a exaustão porque isso envolve a segurança deles e do trânsito, pois coloca outras pessoas em risco”, defende Desgranges, do ITS-Rio.
A garantia de previdência social para os trabalhadores de apps é outro ponto crucial discutido em praticamente todos os novos projetos de lei. Se não for resolvida, poderá gerar um problema sério no futuro: a população latino-americana está envelhecendo e dentro de algumas décadas poderá haver milhões de ex-trabalhadores de apps idosos miseráveis, por não terem acesso à aposentadoria.
A saída poderia ser o recolhimento por parte do próprio trabalhador, mas a experiência mostra que poucos fazem isso – vide o caso dos microempreendedores individuais (MEIs) no Brasil. Por isso, é importante que qualquer nova lei preveja uma contribuição obrigatória, preferencialmente retida na fonte. Assim é feito no Chile e no recém-aprovado projeto mexicano.
Novos direitos digitais
Uma série de novos direitos que levam em conta a natureza do trabalho em plataformas digitais estão sendo incluídos nos projetos de lei em tramitação na América Latina. Abaixo estão listados os mais comuns.
Transparência algorítmica – A caixa-preta dos algoritmos das plataformas digitais incomoda os trabalhadores. Nem sempre as regras são claras sobre como serão remunerados e quais critérios podem beneficiá-los ou prejudicá-los. Os trabalhadores querem maior clareza nas regras, enquanto as empresas receiam que a transparência viole sua propriedade intelectual ou sua estratégia comercial.
Direito à contestação e à revisão humana – Um dos maiores temores dos motoristas e entregadores é ser bloqueado ou excluído de uma plataforma, perdendo subitamente a sua fonte de renda. Esse processo muitas vezes acontece de forma automatizada, sem que o trabalhador seja devidamente informado do motivo
e sem direito de defesa. Em vários países é discutido que se inclua na nova lei que o trabalhador tenha direito a contestar sua exclusão e/ou que tenha direito a uma revisão humana. No Brasil, especialistas lembram que isso já está previsto na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) para qualquer serviço digital. Michele Volpe, líder do Comitê de Delivery do MID, entidade que representa várias plataformas digitais, lembra que não se pode perder de vista também a proteção do consumidor nessas situações: “Ao mesmo tempo que tenho que garantir o direito do trabalhador de contestar, também tenho que garantir ao usuário o sigilo das informações para que não seja retaliado. O motorista que faz a corrida sabe o seu endereço. Então, se ficar claro que foi aquela corrida que ensejou o bloqueio, ele poderia retaliar aquele passageiro”.
Direito à desconexão – Algumas plataformas penalizam os trabalhadores que passam muito tempo desconectados. Uma das demandas é que as novas leis prevejam o direito a um tempo desconectado sem que haja qualquer penalização por parte do algoritmo. Na prática, é o direito ao descanso, que pode ser usado também para o trabalhador resolver problemas familiares, domésticos ou de saúde, por exemplo.
Seguros – É considerado fundamental que esses trabalhadores tenham seguro de vida e contra acidentes. Também se discute a necessidade de seguro para proteger suas ferramentas de trabalho, ou seja, seu carro, moto ou bicicleta. No Chile, a lei aprovada em 2022 exige que as empresas contratem seguro para os veículos dos seus colaboradores. No Brasil, o MID recomenda fortemente a suas associadas que seja contratado seguro de vida para os trabalhadores.
Pontos de apoio – Uma das principais demandas de motoristas e entregadores é contar com pontos de apoio espalhados pelas cidades. São locais onde podem descansar, se alimentar e usar o banheiro ao longo da jornada de trabalho. Alguns aplicativos oferecem isso espontaneamente, mas há quem defenda que seja uma obrigação prevista em lei. Na cidade brasileira de Juiz de Fora uma lei municipal exige a oferta de pontos de apoio para higiene pessoal dos trabalhadores de apps, por exemplo.
Reconhecimento dos gastos operacionais – Uma parte significativa da receita repassada aos trabalhadores é destinada por estes para arcar com gastos operacionais, como combustível, manutenção do veículo, smartphone com plano de dados etc. A Câmara Internacional do Comércio do México (ICC México) defende o reconhecimento dessas despesas operacionais, de forma que a contribuição para seguridade social seja calculada sobre a remuneração líquida dos trabalhadores.
Os desafios pendentes e o protagonismo das empresas
Um dos maiores desafios é construir uma lei uniforme que alcance os diferentes tipos de plataformas digitais. Em alguns países, o debate acaba se afunilando em torno de uma categoria específica, como na Colômbia, que focou nos entregadores, e no Brasil, nos motoristas.
Outro desafio é equilibrar os interesses muitas vezes conflitantes de representantes do Estado, aponta Derly Sánchez, pesquisadora da Universidade do Rosário de Bogotá: “O Estado tem um papel complicado, pois precisa abordar a questão a partir de várias perspectivas. Por um lado, há entidades como a Polícia, responsável por fazer cumprir as normas de trânsito, enquanto outras, como o Ministério dos Transportes, defende a regulamentação das plataformas. Ao mesmo tempo, há políticos que apoiam as plataformas devido aos seus benefícios em termos de emprego e dinamização do mercado, especialmente em um contexto econômico desafiador. A multiplicidade de atores e perspectivas torna a regulamentação um processo difícil.”
As empresas, por sua vez, não têm se omitido de participar do debate, pelo contrário, pois enxergam valor em garantir segurança jurídica para suas operações. Em alguns países, aliás, atuam pró-ativamente para que as negociações avancem, como no caso do Rappi na Colômbia. É do interesse das empresas controlar esse processo para evitar que uma reforma trabalhista prejudique ou inviabilize sua operação.
“Este é um trabalho que oferece oportunidades a muitas pessoas. Na Colômbia, temos 120 mil entregadores. Então qualquer regulamentação deve ter muito cuidado. Se forem introduzidas inflexibilidades, se tentarmos forçar a economia digital do século 21 nas categorias de trabalho do século 20, o único resultado será asfixiar essa economia digital e destruir massivamente empregos para pessoas que, muitas vezes, não conseguem gerar renda em outros setores da economia de cada país”, alerta López, diretor da Alianza in Colômbia.
Volpe, do MID, no Brasil, faz coro: “Entendemos que é extremamente múltiplo o trabalho de intermediação existente dentro do Brasil e no resto do mundo. E isso precisa ser levado em consideração ao se criar uma legislação compatível, que não traga um engessamento excessivo, que possibilite o negócio de ser realizado e que permita às pessoas gerarem essa renda complementar ou única que os aplicativos proporcionam”.
Paula Droguett, gerente legal da Cabify no Chile, resume bem a situação do ponto de vista das empresas: “Não sei se algum dia todas as partes estarão totalmente satisfeitas, mas o mais importante nesse tipo de regulamentação é que ela permita ter segurança jurídica e viver em um ambiente em que as regras do jogo são iguais para todos”.
O melhor caminho para as plataformas digitais, sem dúvida, é participar da discussão e conseguir que as leis trabalhistas prevejam a figura do trabalhador de plataforma digital, que tenha assegurada sua autonomia e independência, mas que, ao mesmo tempo, tenha alguma proteção social e de seguros, sem que isso signifique um custo demasiadamente alto.
O mais arriscado, para as empresas, é que haja decisões judiciais em última instância que estabeleçam vínculo empregatício entre motoristas e entregadores e as plataformas digitais, preservando os direitos trabalhistas tradicionais – salário mínimo, férias remuneradas etc. Isso alteraria radicalmente seu modelo de negócios, que foi construído em cima do conceito de serem meras “intermediadoras”, sem custos trabalhistas.
Os trabalhadores são o elo mais fraco nessa disputa. Sem uma organização sindical forte, sua sorte depende de um espontâneo apoio de atores políticos (presidentes, congressistas etc) e de alguma boa vontade das empresas em contribuir com a construção de novas leis que garantam condições minimamente dignas de trabalho.
Na opinião de alguns advogados trabalhistas, o melhor, na verdade, seria adequar as plataformas digitais às leis atuais, o que talvez seja conquistado na Justiça. “A nossa lei trabalhista já seria suficiente, sim, para lidar com a relação de trabalho da forma que está hoje. Uma reforma não é necessária. A CLT (Consolidação das Leis do Trabalho, nome dado ao conjunto de leis trabalhistas do Brasil) já prevê o trabalho intermitente”, afirma Correa, advogada do Sindicato dos Motoristas de Aplicativos do Estado do Pará e da Força Sindical, no Brasil.
Os próximos passos a serem acompanhados na América Latina incluem:
- monitorar os efeitos práticos da reforma trabalhista no México;
- a promulgação (ou não) dos projetos de lei no Brasil, na Colômbia e no Uruguai;
- e a decisão final do Supremo Tribunal Federal brasileiro sobre vínculo empregatício dos trabalhadores de apps.
Independentemente do caminho que cada país trilhar, a única certeza é de que é preciso discutir sobre essas novas relações de trabalho à luz da transformação digital da sociedade e do impacto econômico e social das plataformas digitais. O que não se deve fazer é ficar parado e recusar essa corrida.
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A situação em cada país
Argentina – Há dois projetos de lei tramitando no congresso argentino. O primeiro propõe promover o modelo de independência e liberdade dos entregadores, ou seja, que os entregadores possam gerenciar seu tempo, escolher a área em que desejam trabalhar, receber 100% das gorjetas e contar com um seguro contra acidentes pessoais.
O segundo projeto de lei também propõe a independência dos entregadores, mas estabelece que a relação entre os prestadores de serviços e as plataformas deve ser de caráter trabalhista. Além disso, propõe direitos como seguros, fornecimento de equipamentos de proteção, transparência algorítmica, suporte humano e portabilidade de dados.
Brasil – O governo federal liderou uma discussão com representantes de empresas e de trabalhadores que culminou no projeto de lei 12/2024, que se encontra parado na Comissão de Comércio, Indústria e Serviços, na Câmara dos Deputados, com relatoria do deputado Augusto Coutinho (Republicanos/PE). O projeto contempla apenas os motoristas de aplicativos, pois não se chegou a um acordo com os entregadores. O texto prevê descanso obrigatório e remuneração mínima por hora; assim como contribuição previdenciária por trabalhadores e empresas.
As principais diretrizes do texto incluem:
- Limite de jornada de trabalho de até 8 horas diárias, podendo ser estendida para 12 horas com intervalos obrigatórios.
- Dentro de um período de 24 horas, o motorista precisará de um período obrigatório de repouso não inferior de 11 horas, durante o qual deverá permanecer desconectado de todas as plataformas.
- Remuneração mínima de R$ 32,10 por hora.
- Contribuição previdenciária em que os motoristas serão considerados contribuintes individuais, com as plataformas também contribuindo
Será contada 1 hora trabalhada a partir do momento em que o/a motorista aceitar a corrida até o momento em que ele deixar o passageiro no destino. No entanto, isso não quer dizer que os motoristas receberão por hora trabalhada. O projeto de lei não determina a forma de operação das empresas operadoras de aplicativo, que poderão remunerar por Km, preço dinâmico, modelo de assinatura etc., desde que a soma dos rendimentos respeite o mínimo estabelecido para cada hora de trabalho.
Ao mesmo tempo, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou em dezembro o julgamento de um recurso da Uber contra uma decisão da Justiça do Trabalho que entendeu que há vínculo empregatício dos motoristas com a empresa. Por enquanto foram concluídas as oitivas das partes interessadas e nenhum voto foi proferido. O julgamento deve ser retomado em 2025.
Chile – Em 1º de setembro de 2022 entrou em vigor a Lei 21.431, que alterou o Código do Trabalho no Chile para regulamentar os contratos de trabalhadores de empresas de plataformas digitais de serviços.
Essa norma reconheceu a possibilidade de que os trabalhadores fossem independentes ou dependentes. Estes últimos poderiam formar organizações sindicais conforme julgassem conveniente, entre outros pontos.
A lei também estabelece algumas obrigações para as plataformas, incluindo a provisão de seguros contra acidentes e de vida para motoristas e entregadores. No entanto, não os reconhece como empregados formais, o que significa que continuam sem acesso pleno a benefícios trabalhistas tradicionais.
A legislação abrange tanto plataformas de transporte, como Uber, Didi e Cabify, quanto plataformas de entrega de comida, como Rappi, Pedidos Ya, Uber Eats e Cornershop.
Embora a Lei de Plataformas Digitais no Chile mencione medidas para melhorar a cobertura social dos trabalhadores, faz isso de forma limitada, sem conceder todos os direitos de um trabalhador formal.
Em relação ao seguro contra acidentes, a lei exige que as plataformas ofereçam cobertura para acidentes de trabalho e doenças profissionais. Isso garante que, em caso de acidente durante suas atividades, os trabalhadores tenham acesso a atendimento médico e, em alguns casos, indenizações. Também está previsto um seguro de vida para proteger economicamente os familiares do trabalhador em caso de falecimento devido a sua atividade laboral. No entanto, a lei não garante uma cobertura de saúde completa, como a oferecida aos trabalhadores formais no Chile, mas assegura atendimento médico em casos de acidentes de trabalho.
Sobre previdência, a lei incentiva os trabalhadores a realizarem contribuições previdenciárias de forma voluntária, permitindo que acumulem fundos para a aposentadoria. Contudo, não obriga as plataformas a contribuir diretamente para a pensão dos trabalhadores.
A proposta de lei não prevê contribuições diretas do governo para financiar esses benefícios. A maior parte dos custos recai sobre as plataformas, especialmente em seguros obrigatórios, como os de acidentes e vida, enquanto os trabalhadores são responsáveis por outros aspectos de sua segurança social, como a poupança para aposentadoria e o seguro de saúde geral.
Devido ao desconhecimento sobre a implementação da norma, muitos trabalhadores não realizam o pagamento previdenciário mensal. Vale destacar que o Serviço de Impostos Internos emitiu uma resolução, vigente a partir de março de 2024, que estabelece que a responsabilidade pela retenção e declaração recai diretamente sobre o empregador.
Sobre a distribuição dos trabalhadores de plataformas abrangidos pela lei, segundo o tipo de serviço, em 2023, 78,1% atuavam em empresas relacionadas ao transporte de passageiros, sendo 87% homens e, em sua maioria, chilenos (55%). De acordo com o último relatório do Ministério do Trabalho, o número total de trabalhadores nesse setor se aproxima de 300 mil, dos quais 43% são chilenos e 57% estrangeiros, predominantemente venezuelanos (42,5%), seguidos por colombianos (4,4%) e peruanos (3,5%), na maioria homens.
Colômbia – Na Colômbia, a regulamentação para trabalhadores de plataformas digitais, como os entregadores do Rappi, está em evolução, impulsionada principalmente pelo governo do presidente Gustavo Petro, que busca garantir direitos trabalhistas para essa categoria. Atualmente, a reforma trabalhista apresentada pelo Ministério do Trabalho inclui propostas específicas para trabalhadores dessas plataformas digitais, como reconhecê-los como empregados com direitos trabalhistas, sob o princípio de “presunção de relação de trabalho”.
Além disso, exige-se transparência no uso de algoritmos, considerando que desempenham um papel crucial na atribuição de tarefas e supervisão dos trabalhadores, o que se equipara a uma relação de subordinação. A reforma também aborda temas como segurança social e condições de trabalho para esses empregados, que, até o momento, frequentemente operam em condições precárias ou informais. Diferentemente de outras normas, essa foi conciliada entre as plataformas, os sindicatos de entregadores e o governo.
A proposta segue em debate no Congresso, e a mensagem do governo é buscar um equilíbrio entre as necessidades dos trabalhadores e as operações das plataformas, que argumentam que seu modelo de negócios não corresponde ao de um empregador tradicional. Embora as propostas estejam avançando, ainda se discutem detalhes específicos para alcançar um consenso, e sua implementação depende da aprovação total da reforma; caso contrário, ela não poderá ser efetivada. A regulamentação abrange apenas as plataformas de entrega, como Rappi, Uber Eats e Didi Food.
No que diz respeito à relação contratual com trabalhadores independentes e autônomos, o projeto estabelece que cláusulas de exclusividade não poderão ser acordadas, e o direito ao descanso deverá ser garantido. Quanto às contribuições para a seguridade social, o empregador assumirá 60% do pagamento, enquanto o trabalhador será responsável pelos 40% restantes. Os principais destaques são: (i) a base de cálculo para as contribuições (IBC) corresponderá a 40% da totalidade dos rendimentos do trabalhador na plataforma; e (ii) o empregador assumirá 100% da contribuição às Administradoras de Riscos Laborais (ARL).
No caso da Uber e de plataformas de motoristas, a situação é diferente. Atualmente, não há uma lei que os regule. Apenas há algumas semanas foi apresentado um projeto de lei no Congresso, por parte de vários senadores e representantes, sem apoio do governo e sem participação das empresas.
A Uber continua operando na Colômbia sob um modelo de intermediação, após modificações realizadas em 2020 para cumprir com as regulamentações locais. No entanto, os motoristas continuam trabalhando em condições de informalidade, com rendimentos variáveis e sem acesso à estabilidade trabalhista.
Costa Rica – Foi proposto apenas um projeto de lei para estabelecer se um entregador de apps de delivery é considerado um trabalhador perante a lei. É discutida a reforma do artigo 18 do Código de Trabalho para que, quando uma pessoa realizar serviços de entrega ou distribuição de produtos por meio de uma plataforma digital, presuma-se que existe uma relação trabalhista com a empresa da plataforma. Na Costa Rica, a discussão começou recentemente, após um protesto realizado pelos entregadores em julho de 2024. “A legislação trabalhista atual está preparada apenas para situações laborais em que existe um salário mínimo, relações estáveis e permanentes, e onde se gera constantemente uma quantia fixa de dinheiro”, explica Lucía Solórzano, gerente da Consultoría de BDS Asesores Costa Rica.
México – O Senado mexicano aprovou em dezembro de 2024 a reforma da Lei Federal do Trabalho, que busca garantir direitos trabalhistas para entregadores e motoristas. De acordo com o Serviço de Administração Tributária (SAT), há no México 658 mil pessoas trabalhando em plataformas digitais. Deste total, cerca de 272 mil geram rendimentos iguais ou superiores ao salário mínimo, sendo os principais beneficiados pela reforma.
A nova lei reconhece pela primeira vez uma relação laboral subordinada entre as plataformas digitais e seus trabalhadores. Essa mudança garante que aqueles que geram rendimentos equivalentes ao salário mínimo terão acesso a benefícios como: filiação ao Instituto Mexicano do Seguro Social (IMSS); contribuições ao Infonavit, uma instituição pública que oferece acesso à habitação para os trabalhadores formais; direito à participação nos lucros, desde que trabalhem mais de 288 horas por ano. Caso não alcancem o rendimento mínimo, os trabalhadores serão classificados como independentes, com proteção contra acidentes de trabalho, mas sem acesso a benefícios adicionais.
Além disso, respeita-se a natureza flexível e descontínua do trabalho nessas plataformas, permitindo que entregadores e motoristas escolham seus horários e áreas de trabalho. Entretanto, estabelece-se que o salário deve incluir benefícios como décimo terceiro, adicional de férias, pagamento de dias de descanso e horas extras.
Uruguai – Governo federal propôs em 2022 um projeto de lei que abrange motoristas e entregadores. O projeto ficou parado no Congresso uruguaio por dois anos, até ser aprovado pela Câmara dos Deputados em setembro de 2024. Agora aguarda deliberação no Senado.