“Sorria, você está sendo filmado”. Este aviso se espalhou pelas paredes de espaços públicos e privados do País nas últimas décadas junto com a massificação do uso de câmeras de circuitos internos de monitoramento. Agora está na hora de atualizar a frase para “Sorria, você está sendo reconhecido”. Gradativamente, governos e empresas privadas estão adotando soluções de reconhecimento facial para aplicações de segurança pública, combate à fraude, controle de acesso, ou simplesmente para comodidade e melhor relacionamento com clientes. O Brasil, pela pluralidade étnica de sua população, é tido por especialistas como um mercado ideal para treinamento e aperfeiçoamento de algoritmos de reconhecimento facial, ao mesmo tempo em que consiste em um desafio para os mesmos. Já há inúmeros casos implementados com essa tecnologia no País, mas ainda é preciso enfrentar desafios de ordem técnica e cultural, além de adaptar as soluções para o cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entra em vigor em agosto do ano que vem.
Na segurança pública, os resultados começam a chamar a atenção. Pelo menos quatro estados já experimentam a tecnologia: Rio de Janeiro, Bahia, Paraíba e São Paulo. No Rio de Janeiro, após quatro meses de testes em câmeras instaladas nos bairros de Copacabana e Maracanã, 63 pessoas foram presas, desde pais que deviam pensão alimentícia até traficantes e homicidas. A solução experimentada, fornecida pela Huawei e pela Oi, compara os rostos dos transeuntes com aqueles de 49 mil procurados pela Justiça, presentes em um banco de dados provido pela Polícia Civil. “Posso afirmar, enquanto profissional de segurança pública: se esse sistema puder ser adotado em larga escala na cidade ou no estado do Rio de Janeiro, será um aparato tecnológico de grande valia para diminuir a criminalidade”, diz o coronel Mauro Fliess, porta-voz da Policia Militar do Rio de Janeiro, em entrevista recente para Mobile Time. O Rio de Janeiro se prepara agora para fazer testes com soluções de outros fornecedores antes de realizar uma licitação. Um dos novos testes será com câmeras instaladas nos uniformes de policiais.
Em Campina Grande, na Paraíba, as festas de São João deste ano, realizadas no centro da cidade, também contaram com reconhecimento facial operado pelas forças de segurança, com uma solução fornecida pela startup carioca Retina. Como resultado, em um mês, 11 foragidos foram presos e a quantidade de ocorrências durante as comemorações caíram 90% em comparação com o ano anterior.
Enquanto isso, em São Paulo, o governo estadual decidiu que vai usar a tecnologia em investigações da Polícia Civil, comparando imagens capturadas de suspeitos na cena de um crime com seu banco de dados de documentos de identidade. Neste caso, a solução é provida pela Thales Gemalto, mesma empresa que atende ao governo norte-americano para controle de imigração.
A tecnologia é aplicada também para segurança privada e patrimonial. É o caso de alguns shopping centers. Um dos pioneiros é o Norte Shopping, o maior em fluxo de pessoas no Rio de Janeiro, com média de 80 mil visitantes por dia, chegando a 130 mil entre Black Friday e Natal. Desde 2017, o Norte Shopping analisa os rostos captados em 17 câmeras instaladas em seus principais pontos de entrada e saída. As imagens são cruzadas com um banco de dados mantido pelo estabelecimento com rostos de pessoas que já cometeram delitos dentro do shopping, como furtos e assaltos. Também são comparadas com o banco de dados mantido pelo Disque Denúncia, que é público. Quando soa um alerta, os operadores chamam a polícia. Os suspeitos passam a ser monitorados pelas câmeras e a abordagem policial para averiguação acontece somente quando saem do shopping. Em dois anos de funcionamento, 15 criminosos foram presos graças à solução instalada no Norte Shopping, que é provida pela Retina, a mesma do São João de Campina Grande.
A segurança nas fronteiras, assim como em portos e aeroportos, também tem muito a se beneficiar do reconhecimento facial. O mesmo vale para o controle alfandegário. Em alguns aeroportos internacionais, como o Galeão, no Rio de Janeiro, e Guarulhos, em São Paulo, câmeras filmam as pessoas a caminho da alfândega e um software de reconhecimento facial cruza as imagens com um banco de dados da Receita Federal para indicar ao fiscal quem deve ou não abrir a bagagem. A solução é provida pela japonesa NEC, que também fornece para o FBI.
Combate a fraudes
Outra área com bastante potencial para a biometria facial é o de combate a fraude. Há aplicações em diferentes verticais com esse objetivo no Brasil, do vestibular até o comércio eletrônico. “Hoje no Brasil o volume de fraudes é muito grande. O País não suporta mais tanta fraude e o mercado percebeu que usando a tecnologia de reconhecimento facial a redução seria significativa”, avalia Célio Ribeiro, presidente da Abrid (Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia em Identificação).
Varejistas que emitem cartões de crédito private label, por exemplo, requerem fotos dos proponentes e cruzam a imagem com bancos de dados privados para verificar a identidade. A brasileira Acesso Digital provê esse serviço e mantém um banco de dados com dezenas de milhões de pessoas cadastradas, associando fotos de seus rostos com seus CPFs. Desta forma, se um fraudador tentar emitir um cartão com o CPF de outra pessoa presente no banco de dados, o golpe será revelado imediatamente. “Já protegemos centenas de milhares de brasileiros que nem sabem que foram protegidos. Para as empresas, economizamos alguns milhões de reais por mês”, afirma Marcelo Zanelatto, diretor de produtos da companhia. A Acesso Digital recebe 2,5 milhões de fotos por mês, em média.
Por sua vez, o vestibular da Fuvest, o maior do País, adota a tecnologia desde o ano passado para inibir fraudes. Os 130 mil candidatos, ao preencherem a ficha de inscrição online, enviam uma foto de seu rosto, que é comparada com outra tirada por fiscais com tablets durante as provas. Uma última comparação é feita no ato da matrícula.
É notório o esforço do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na construção de um banco de dados com as digitais dos eleitores para sua identificação nas eleições. O que pouca gente sabe é que o tribunal também está montando uma base com os rostos dos eleitores, para eventual identificação por reconhecimento facial no futuro, embora não haja planos concretos para isso por enquanto.
A biometria facial pode ser usada também para o controle de frequência de funcionários, como um ponto eletrônico, prevenindo fraudes. Por sinal, uma solução assim, desenvolvida pela Totvs, já vem sendo utilizada na agricultura, com a câmera de smartphones.
Comodidade e marketing
O avanço na capacidade computacional e a facilidade de acesso a motores de reconhecimento facial ampliou a diversidade de casos de uso, extrapolando as áreas de segurança e combate a fraude. “O reconhecimento facial agora está mais acessível. Se antes era restrito à segurança pública e nacional, agora chegou ao mundo privado”, comenta André Eleterio, diretor de marketing e comunicação da NEC no Brasil.
Um dos seus atrativos, em comparação com outras técnicas de biometria, é a comodidade, por ser considerada menos invasiva. “A biometria facial é aquela que dá mais comodidade para as pessoas. Não é preciso encostar o dedo em lugar nenhum, nem chegar o olho perto de nada”, compara Ricardo Abboud, gerente de vendas e marketing, identity & biometric solutions da Thales Gemalto.
Alguns modelos de smartphone premium, por exemplo, oferecem a possibilidade de desbloqueio através do reconhecimento facial pela câmera frontal. De acordo com a mais recente pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box sobre biometria e senhas, em 12 meses subiu de 1% para 5% a proporção de brasileiros com smartphone que desbloqueiam seu aparelho por reconhecimento facial.
Da mesma forma, diversos condomínios e instituições com áreas de acesso restrito usam reconhecimento facial para controlar quem entra e quem sai, por entenderem que a tecnologia garante uma boa relação entre comodidade e segurança.
Paralelamente, alguns aplicativos móveis adotaram biometria facial como uma forma de autenticação. O app da Gol, por exemplo, permite o check-in desta maneira. O Venuxx, um serviço de corrida de automóveis exclusivo para motoristas e passageiras mulheres, utiliza a tecnologia para verificar o gênero das usuárias.
Há experiências também de pagamentos com o rosto, o que pode ser mais prático e rápido do que digitar uma senha ou sacar o celular para encostar em uma máquina de POS. O Sem Parar está realizando um teste-piloto com essa tecnologia para o pagamento de estacionamento VIP no Shopping Morumbi, em São Paulo, por exemplo.
Espera-se ainda que o reconhecimento facial seja aplicado no marketing. Uma das possibilidades imaginadas é a recepção personalizada para um cliente fiel que entra em uma loja, a partir do seu reconhecimento pelas câmeras.
Desafios técnicos
Existem diversos motores de reconhecimento facial disponíveis no mercado. O que a maioria deles faz é medir as distâncias entre vários pontos de um rosto, como aquela entre os olhos, do nariz até o queixo, do canto do olho até a ponta da orelha etc. Esses dados são transformados em um código numérico de identificação do rosto. São esses códigos que costumam ser trafegados pela rede, armazenados em bancos de dados e efetivamente comparados pelos softwares.
A quantidade de pontos analisados varia entre os motores, podendo ser desde algumas dezenas até centenas. Essa quantidade afeta a velocidade de reposta e a capacidade computacional necessária. Trabalhar com muitos pontos aumenta a precisão na identificação, mas também o risco de ocorrerem falsos negativos, ou seja, quando a pessoa verdadeira não é identificada. Isso pode acontecer dependendo da qualidade das imagens que são comparadas. Por outro lado, usar poucos pontos aumenta a chance de falso positivo, que é reconhecer equivocadamente uma pessoa. A cada análise, as soluções calculam um percentual de probabilidade de acerto, que deve ser levado em conta por quem opera o sistema. Dependendo da finalidade de cada aplicação, variam a quantidade de pontos e o percentual mínimo aceitado para um reconhecimento.
Há diversos fatores que influenciam no trabalho dos motores de reconhecimento. A resolução da câmera é um deles, embora seja possível conseguir resultados satisfatórios com modelos de baixa resolução, desde que outros fatores sejam atendidos. O posicionamento das câmeras, por exemplo, faz diferença. Se estiverem na mesma altura do rosto e apontando diretamente para ele, melhor. A iluminação do ambiente também afeta, assim como o ângulo do rosto. Bonés, máscaras, véus e outros acessórios que tampem parte da face atrapalham o reconhecimento e diminuem a probabilidade de identificação. A qualidade das imagens no banco de dados usado para comparação também é primordial. Uma única boa imagem pode ser suficiente para o reconhecimento de uma pessoa.
“Não se pode confiar 100% no software e nem ter alguém mal preparado para operá-lo. Não existe solução de reconhecimento facial que funcione sozinha. E nem à prova de falha, até porque esta pode ser humana. Por isso é importante ter processos de dupla ou mesmo tripla checagem”, comenta Torres, da Retina.
Muitos dos motores são dotados de algoritmos com aprendizado de máquinas (machine learning) para aperfeiçoarem seu trabalho ao longo do tempo. Por isso, a variedade étnica de sua população torna o mercado brasileiro ao mesmo tempo atraente e desafiador.
“O Brasil não é para amadores. Isso se aplica para a biometria facial também. Um algoritmo precisa ter sido treinado para reconhecer diversos tipos de rostos. É um desafio maior trabalhar no mercado brasileiro especialmente para empresas que treinaram suas soluções em nichos, ou em mercados com pouca diversidade”, explica Abboud, da Thales Gemalto.
A infraestrutura é outro desafio. Afinal, não basta ter câmeras, é preciso processar as imagens dos rostos e transmitir seus dados. A transformação da face em um código, com as informações dos diversos pontos analisados, pode acontecer localmente, em um servidor ou mesmo em um dispositivo móvel. Depois, é necessário haver algum tipo de conexão com o servidor onde está o banco de dados que servirá de base de comparação. É comum esse banco de dados estar na nuvem, protegido por criptografia, por uma questão de segurança. Dependendo da aplicação, a rede móvel 4G é suficiente para esse tráfego.
LGPD
Outro desafio para as soluções de reconhecimento facial é atender à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entrará em vigor em agosto de 2020. A captura e o armazenamento de dados biométricos do rosto de uma pessoa precisam ser feitos com o seu consentimento e utilizados para uma finalidade específica e determinada com clareza. O compartilhamento desses dados para terceiros não pode acontecer sem o conhecimento ou autorização do cidadão.
Vale destacar que a LGPD não se aplica para o tratamento de dados pessoais em em segurança pública, segurança nacional, segurança de Estado, atividades acadêmicas, matérias jornalísticas, e/ou investigações de infrações penais.
Todas os fornecedores dessa tecnologia e seus clientes estão correndo para se adaptar à lei. “As empresas estão verificando os dados que armazenam, separando quais são sensíveis, e tomando medidas de segurança, como a criptografia”, comenta Ana Maria Duarte, chief compliance officer (CCO) da NEC na América Latina.
A Retina usa um motor de reconhecimento inglês chamado FaceWatch cujo código foi reescrito do zero para se adequar à GDPR, equivalente à LGPD na Europa. Como a lei brasileira se inspirou na versão europeia, sua solução já está plenamente adequada à nova legislação nacional. “Atualmente a primeira pergunta dos clientes é sobre LGPD, antes mesmo do preço”, relata o CEO da startup.
Um cuidado comum de muitos fornecedores é não armazenarem os bancos de dados com as informações biométricas, deixando isso a cargo do cliente, para evitarem problemas legais.
Cultura
A adoção do reconhecimento facial no Brasil está apenas começando e sua aceitação pela população não está garantida. Ainda é preciso vencer a resistência de muita gente. Para tanto, é necessário não apenas respeitar a LGPD, mas funcionar com máxima eficiência. A ocorrência de falsos positivos ou falsos negativos chamam muito mais a atenção no reconhecimento facial do que em qualquer outra técnica de biometria digital, alerta Abboud, da Thales Gemalto. “Quando acontece algum equívoco no reconhecimento facial isso fica evidente para o usuário, porque ele está se vendo. E aí pode até se sentir ofendido”, diz o executivo.
Ricardo Mansano, executivo de soluções de governo da Huawei no Brasil, reforça a importância de se debater amplamente na sociedade as questões regulatórias e sociais relacionadas a quaisquer novas tecnologias, “para que a transformação digital sempre aconteça de forma transparente e segura para todos”.
Em suma, se não houver transparência, ética e zelo por parte das empresas na adoção dessa tecnologia, ninguém vai sorrir para as câmeras.
Mobi-ID
Os desafios de ordem técnica, social e regulatória para aplicações de reconhecimento facial serão debatidos em painel no seminário Mobi-ID, na próxima segunda-feira, 25, no WTC, em São Paulo. Estão confirmados para esse painel: Ana Maria Ravaglia Duarte, Chief Compliance Officer para América Latina da NEC; Gabrielle Jaquier, COO da Venuxx; Marcelo Zanelatto, diretor de produtos da Acesso Digital; Ricardo Abboud, gerente de vendas e marketing, identity & biometric solutions da Thales Gemalto; e Ricardo Mansano, executivo de soluções de governo da Huawei no Brasil.
O Mobi-ID terá também um painel sobre diferentes meios de autenticação digital; palestras sobre LGPD, criptografia na era da computação quântica, autenticação de objetos conectados, e localização como fator de identificação; e apresentação de cases da Vivo, TSE, prefeitura de São Paulo e Polícia Militar do Rio de Janeiro. O evento é organizado por Mobile Time.
A programação completa e mais informações estão disponíveis em www.mobi-id.com.br, ou pelo telefone 11-3138-4619, ou pelo email [email protected].