O Plenário do Cade decidiu, por unanimidade, abrir investigação sobre suposta conduta abusiva da Ericsson na negociação de licenças de uso das patentes do 5G, que possibilitam a compatibilidade de dispositivos com a tecnologia. O despacho, aprovado nesta quarta-feira, 23, também abre prazo para que empresas do setor de eletrônicos encaminhem ao Cade informações que possam subsidiar a análise.
A decisão ocorreu no âmbito de processo aberto a partir de representação do Grupo Lenovo – o que inclui a Motorola – e em meio a uma reviravolta no posicionamento do Cade em relação ao tema. A análise preliminar do órgão chegou a concluir decisão favorável à Ericsson, o que motivou um recurso da Lenovo pautado nesta tarde. Contudo, entre o pedido de recurso e o julgamento, as empresas firmaram um acordo para encerrar os litígios, que tinha como uma das condicionantes a retirada dos processos em curso nos órgãos antitruste (relembre mais abaixo). Tal imposição de encerrar os processos como parte do acerto comercial incomodou o Cade, entre outros pontos.
Na decisão, os conselheiros determinaram investigação de possível cometimento de uma ou mais das seguintes condutas anticompetitivas por parte da Ericsson:
- Recusar a venda de bens ou prestação de serviços;
- Subordinar a prestação de serviço à utilização de outro;
- Exercer ou explorar abusivamente direitos de propriedade industrial, intelectual, de tecnologia ou marca;
- Discriminar adquirente de bens ou serviços, por meio da fixação diferenciada de preços ou de condições operacionais; e
- criar dificuldades ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa adquirente de bens ou serviços.
O despacho deixa expressa autorização para que “terceiros interessados apresentem elementos probatórios adicionais, que possam corroborar ou afastar a materialidade da conduta sob investigação, no prazo de 30 dias corridos a contar da publicação no DOU da ata de julgamento”.
Entenda o caso
A disputa no Cade começou em maio do ano passado, quando Lenovo/Motorola acionou o órgão em meio às dificuldades em negociar as licenças de 5G no Brasil, cuja patente de compatibilidade e interoperabilidade é detida pela Ericsson. No pedido de intermediação do órgão, Lenovo/Motorola alegou que a Ericsson estaria impedindo que seus aparelhos fossem adaptados à nova geração de conexão móvel, impondo “condições de licenciamento injustas e discriminatórias”.
Após um Procedimento Preparatório de Inquérito Administrativo, a Superintendência-Geral decidiu, em dezembro, negar o pedido de medidas preventivas feito pelas empresas por entender que não ficou demonstrado dano sob a perspectiva antitruste e que não havia comprovação de violação aos termos FRAND [sigla em inglês para termos justos, razoáveis e não discriminatórios] na negociação em curso.
No mesmo mês, o Grupo Lenovo recorreu a fim de rever o posicionamento da SG e insistir na necessidade de medidas que facilitassem a negociação das licenças, levando em conta a legislação brasileira, alegando que a fabricante estaria cobrando taxas “excessivas e desproporcionais”, o que geraria “consequências competitivas imediatas e concretas”, “reduzindo a escolha dos consumidores”.
Conforme o relato do Grupo Lenovo ao Cade, àquela altura, no final do ano, ele já tinha aceitado pagar o preço transitório autodeclarado pela Ericsson como devido para as licenças de 5G no Brasil, valor este que está sob sigilo, no âmbito de processo judicial, até que a licença cruzada global em termos FRAND fosse acordada entre as partes ou determinada em tribunais arbitrais. No entanto, na visão das autoras, a Ericsson estaria usando a jurisdição nacional, “para exigir um acordo com efeitos globais, em valores extorsivos”, comprometendo a presença das concorrentes no Brasil.
No entanto, as empresas acabaram anunciando um acordo global no dia 3 de abril. Como parte do acerto, ficou estabelecido que as ações judiciais e processos administrativos em andamento, incluindo os casos pendentes na Comissão de Comércio Internacional dos Estados Unidos (USITC), seriam retirados.
Um dia antes de anunciarem o acordo, no dia 2 de abril, a defesa da Ericsson chegou a protocolar uma manifestação ao Cade pedindo que o recurso do Grupo Lenovo fosse negado, alegando que ele queria, na verdade, que o Conselho substituísse decisões do Judiciário.
No dia seguinte ao acordo, 4 de abril, a Ericsson encaminhou novo comunicado, informando que o acerto resolveu a disputa de licenciamento de patentes e pediu que o Conselho adiasse a análise do recurso pelo Tribunal do Cade, até então prevista para a semana seguinte, no dia 9 de abril, para que desse tempo da própria Lenovo solicitar a retirada do recurso. E assim foi feito.
No dia 8 de abril, a Lenovo formalizou o pedido para que o Cade reconhecesse que o recurso perdeu o objeto e deveria ser arquivado. Mas não foi essa a decisão.
Cade sobre patentes do 5G

Relator da análise sobre patentes do 5G no Cade, Gustavo Augusto. Foto: Reprodução/Cade
O pedido de desistência do recurso foi apenas “homologado”, ou seja, reconhecido, sem análise de mérito. Junto a isso, ficou determinado o processo de apuração da conduta da Ericsson.
Para o relator do caso, o conselheiro Gustavo Augusto Freitas de Lima, os documentos indicam que “a Motorola/Lenovo tinha fundamento jurídico para desejar fazer um acordo de forma mais limitada do ponto de vista territorial, uma vez que possuía uma legítima expectativa de obter preços e condições mais favoráveis em outras jurisdições”, mas há suspeitas de que a Ericsson “buscou fazer uso de sua condição como titular de uma patente essencial para forçar uma contratação única, condicionando o licenciamento das patentes nacionais a um licenciamento global”, enquanto que “as patentes que estavam em litígio eram duas patentes brasileiras, tão somente” e não patentes existentes em outras jurisdições.
A questão territorial é importante, mas não é o único ponto que acendeu o alerta para o Cade. O conselheiro ressaltou que “ficou claro não só na fase instrutória, mas no próprio anúncio do acordo, que a Ericsson quer impor, não só o licenciamento mundial, mas impor a desistência dos litígios locais”.
“Ou seja, tinham litígios, a princípio, legítimos, no Reino Unido, nos Estados Unidos e na Colômbia e se colocou como condição o licenciamento da patente que o interessado teria que não só submeter ao licenciamento mundial, mas estaria obrigado a desistir dessas ações. Obviamente, nós estamos falando de juízo inicial, […] não estamos aqui condenando – [mas] me parece que configura um abuso da posição dominante, porque só a Ericsson consegue impor essas condições, porque ela sabe que se ela não impuser, a empresa está fora do mercado, como efetivamente ela quis fazer”, disse o relator durante a apresentação do voto.
Lima destaca também que “a celebração do acordo entre o Grupo Lenovo e a Ericsson para as patentes do 5G “não afasta a possibilidade de que outras empresas do mercado relevante estejam e continuem sendo afetados pela suposta conduta de recusa de negociação em posição discriminatória, especialmente no que tange ao acesso do produto em bases não discriminatórias”.
“Quando uma empresa fornece a sua tecnologia para o padrão de um sistema tecnológico, ela deve assumir uma obrigação de permitir que outras empresas usem tal tecnologia para poder concorrer nos novos mercados. Admitir o contrário é permitir que padrões tecnológicos sejam estabelecidos com o fim de fechar o mercado, impedir a inovação e se estabelecer monopólios, o que feriria os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência”, concluiu o conselheiro.
O preço do acordo para uso das patentes do 5G está sob sigilo no processo, sendo este outro ponto que chamou atenção do órgão. O relatório aponta indícios de que a Ericsson esteja efetuando a chamada discriminação de preço de primeiro grau, também chamada de discriminação de preço perfeita.
“A discriminação de preço de primeiro grau ocorre quando o vendedor cobra de cada consumidor o preço máximo que ele está disposto a pagar, capturando todo o excedente do consumidor. Na discriminação de preço de primeiro grau, cada cliente paga um preço personalizado que exige informações precisas sobre a disposição de pagamento de cada cliente e, portanto, uma das suas características é a negociação individual, pessoal e sigilosa, que parece o caso dos autos”, concluiu.
O voto também faz menção a outros fabricantes, para além do mercado de smartphones. “Esse licenciamento de tecnologia 5G é feito por empresas de todos os portes […] O avanço do 5G no mundo intensificou a relevância das ISPs, pois essa tecnologia abrange múltiplos setores, que vão desde a telecomunicação pessoal até a chamada IoT, incluindo veículos autônomos, assistentes eletrônicos domésticos e mesmo a integração em cidades inteligentes”, pontua o relator.
O entendimento geral é de que faltam critérios transparentes sobre o preço. “Parece-me que os preços dessas patentes são negociados livremente, de acordo com o poder de barganha de cada uma das partes, sem nenhuma preocupação verdadeira com a adoção de qualquer parâmetro objetivo ou com o uso de qualquer critério que possa ser replicável a casos futuros”, afirmou Lima.