A aprovação por parte de 193 países do Pacto Digital Global, documento que estabelece diretrizes para a Internet, inteligência artificial e plataformas digitais, da ONU, foi festejada por Patricia Peck, CEO do escritório Peck Advogados e especialista em direito digital, e Pedro Gueiros, professor de Direito Civil e novas tecnologias na UFRJ e Ibmec-Rio, ambos ouvidos por Mobile Time. Enquanto a primeira acredita que grandes casos de disputa entre países que envolvam tecnologia e mundo digital possam ser tratados em cortes internacionais, o segundo vê o texto como a volta do multilateralismo, a globalização que o próprio mundo virtual tanto pregou nos anos 1990, mas que foi esquecido com a polarização.
Segundo Peck, estabelecer tratados internacionais sobre a Internet é essencial e um assunto que vem sendo debatido na academia há alguns anos. “O pacto é extremamente relevante, justamente para reforçar a importância de se alcançar um alto nível de colaboração, ainda mais quando falamos de direitos humanos, de garantias de cibersegurança. Vejo que o acelerador (do Pacto Digital Global) é o debate da governança da IA que está acontecendo em alguns países porque já se viu que os impactos são profundos e vão moldar o mundo nos próximos 30 anos”, explicou.
Sob a perspectiva do direito internacional, o professor de Direito da UFRJ se mostrou animado com os discursos que ouviu no dia da apresentação do pacto. Ele aposta na importância de a ONU retomar o multilateralismo que acabou por escapar a partir da polarização que tomou conta do mundo, assim como os discursos de ódio.
“Víamos uma ascensão da globalização, de trocas intensas sobretudo facilitadas pela Internet, a construção de um mundo sem fronteiras, a menos no mundo virtual. Mas, ao longo dos anos, houve o arrefecimento e cada vez mais os países estão separados e extremados. Podemos ver isso em termos de políticas e questões sociais. Isso reflete na política transfronteiriça e no alinhamento entre os países. Então, o pacto da ONU é muito positivo quando vimos que 193 países concordaram com o texto. Essa convergência internacional é muito salutar e já não era sem tempo de a gente fazer um movimento em prol dessa cooperação internacional”, resumiu Gueiros.
ONU: garantir o ambiente digital e o físico
Peck aponta que o documento é muito importante por se tratar de uma agenda prioritária e necessária.
“Não temos como avançarmos na governança digital, do ponto de vista de sociedade e de planeta, sem que isso aconteça a partir de cooperação entre os países. A ONU liderar essa pauta é realmente uma resposta a uma problemática que temos desde o início de que a Internet desafia as fronteiras e o ambiente transfronteiriços. E os problemas são comuns a todos. É uma forma de aumentar a eficiência, otimizar os recursos e garantir a agenda sustentável”, afirma.
Entre os pontos importantes do pacto está a preocupação em equilibrar o uso dos recursos naturais para poder garantir o ambiente digital acessível, disponível e sustentável, afirma Peck. “Existe hoje uma preocupação grande com o apagão energético que pode evoluir para um apagão digital. E até se prevê uma próxima pandemia”, comenta a especialista em direito digital. “ Ao integrar o Pacto Digital Global às gerações futuras, a ONU sinaliza um compromisso de criar uma governança mundial para levar em conta as necessidades das gerações futuras no sentido da sua vida digital e exercícios de direitos e deveres a partir desse ambiente que deve ser sustentável para todos”, diz.
Peck tem esperança de que o movimento feito pela ONU signifique que casos envolvendo o mundo digital e as tecnologias de repercussão internacional possam ser levados para cortes internacionais, como da própria ONU ou da OEA. “É um caminho extremamente interessante para termos uma sociedade digital mais integrada, mais plena, global e conectada. Lidar com isso em cada um dos países é uma tarefa muito mais difícil do que unir forças. E o melhor local para tratar de direitos humanos e sustentabilidade é na ONU”, resumiu.
O Pacto Digital Global é uma das iniciativas mais relevantes dos últimos tempos. “Ali estão endereçados compromissos firmados que vimos no Internet para Todos – de conectar escolas e hospitais no Brasil – e da Internet para promover a inclusão digital global”, resume Peck.
A ressalva: a aplicabilidade
O professor, no entanto, aponta que a adoção ao documento não é uma obrigação dos países signatários, sendo sua implementação ainda um mistério. “A gente já vê uma certa dificuldade de como isso vai ter uma aplicabilidade já que não será coercitivo, não terá nenhum tipo de imposição. Isso causa certa preocupação”, diz.
Entre os pontos que poderiam ser aprimorados, Gueiros destaca o fato de o documento não estimular mais a troca entre os países detentores da tecnologia com aqueles que a consomem. “A questão envolvendo uma cooperação entre os países do Norte Global (basicamente os produtores de tecnologia) e do Sul Global (majoritariamente os consumidores) é muito tímida. Seria importante haver um investimento em corrigir essas assimetrias que existem entre os países”, resume.
Para o especialista, o documento “é muito bom”, mas chama sua atenção a falta de uma abordagem mais pragmática, ou seja, como os países vão colocar em prática suas sugestões. “Como teremos essa cooperação entre os diferentes países? Quais serão os mecanismos voltados a esse tipo de tutela?”, questiona.
Com relação à inteligência artificial, Gueiros vê que o documento tenta correr na direção das regulamentações já vigentes – como o AI Act, da União Europeia ou o próprio PL 2338, discutido no Brasil. “Vemos uma preocupação em promover o uso mais sustentável dos recursos, promover a equidade no acesso, porque ele (o documento) reconhece que existe assimetria de poder”, avalia.