A construção de redes móveis para uso privativo por empresas de diferentes verticais é apontada como uma promissora nova fronteira de negócios para fabricantes de infraestrutura, operadoras de telecomunicações e integradores de TI. Para muitos, é um oceano azul a ser explorado, o que não significa que a jornada será livre de algumas tempestades.
Por enquanto, trata-se de um mercado ainda relativamente pequeno, mas com grande potencial de crescimento, inclusive no Brasil. A GSA estimou em um relatório publicado em junho passado que existam 794 redes privativas móveis no mundo implementadas ou em processo de implementação. A maioria é em 4G e está concentrada na China. Por sua vez, a IDC prevê que esse mercado vai movimentar US$ 8,2 bilhões no mundo em 2026, o que representará um crescimento médio anual de 36% ao longo dos próximos quatro anos – e nesta conta não está computada a receita com conectividade das referidas redes. Em outra pesquisa, feita pela Omdia no fim do ano passado com representantes de 450 empresas em nove países, 10% dos respondentes já tinham redes privativas móveis implementadas e 6% tinham provas de conceito em andamento, mas o restante possuía planos de lançar uma dentro de dois anos.
A maioria dos projetos de redes privativas móveis no mundo estão sendo feitos para indústrias, varejistas, portos e governos, apontam IDC e Omdia. Mas por que essas empresas estão recorrendo à tecnologia móvel para suas redes?
Há inúmeras explicações para esse interesse. “Fala-se muito de baixa latência, mas o motivador principal para a implementação de uma rede privativa móvel tem sido a segurança de dados e a privacidade das informações”, destaca Ari Lopes, gerente para as Américas de mercados de telecom da Omdia. “Em segundo lugar vem a confiabilidade e a qualidade do serviço, que na rede 5G são acima da média. O terceiro ponto é o fato de a rede móvel suportar múltiplos serviços, desde a conexão de sensores com tráfego leve até a comunicação de voz e vídeo em alta definição. O 5G traz essa flexibilidade. E o quarto ponto é a escalabilidade para suportar uma grande quantidade de dispositivos”, elenca Lopes, citando dados coletados em pesquisa feita pela Omdia.
Na comparação com fibra ótica ou qualquer outra tecnologia cabeada, existe ainda a vantagem da mobilidade. Em um chão de fábrica isso significa poder trocar máquinas de lugar sem ter que mexer em fios. Além disso, o advento do 5G pôs a tecnologia móvel praticamente em pé de igualdade com a fibra ótica em termos de velocidade de download e latência. Já em áreas remotas e amplas, como fazendas ou minas, o alcance da cobertura móvel é a principal vantagem.
Brasil
No Brasil, os projetos de redes privativas móveis envolvem, em sua maioria, grandes empresas de setores como manufatura, mineração, agricultura e energia. Entre os exemplos mais emblemáticos estão Vale, Gerdau, Nestlé, Petrobras, Stellantis, WEG, São Martinho e Neoenergia.
Há a expectativa de que essa tendência se espalhe também para empresas de porte médio no País por quatro razões: 1) existência de um arcabouço regulatório favorável, com um vasto cardápio de frequências a preços acessíveis que podem ser usadas em redes privativas móveis, com ou sem a participação de operadoras celulares; 2) atuação de players diversos promovendo redes privativas móveis, incluindo fabricantes de infraestrutura, operadoras de telecom, MVNOs, integradores e consultorias; 3) chegada do 5G em padrão standalone, com possibilidade de network slicing; 4) queda no preço de equipamentos graças a small cells.
Marco Szili, sócio-fundador da Telesys, que representa a fabricante chinesa Baicells no Brasil, enxerga o mercado nacional de redes privativas móveis se desenvolvendo em forma de “J”: “Estamos na parte horizontal e começando a descolar para uma subida na vertical”, avalia.
Diretor de marketing da Embratel, Alexandre Gomes também está otimista: “Temos dezenas de casos em fase de prospecção. Esse negócio está quente. Chegou a hora de o pessoal partir para a experimentação.”
Na Qualcomm, a disponibilidade de espectro para redes privativas é destacada como fator positivo para o desenvolvimento desse mercado. “A Qualcomm aposta muito no desenvolvimento das redes privadas. Vemos com bons olhos esse mercado neste momento em que se conseguiu definir uma quantidade razoável de espectro com essa finalidade”, argumenta Francisco Giacomini, vice-presidente de relações governamentais para a América Latina da Qualcomm.
Desafios
Porém, ainda há barreiras a serem superadas para esse mercado deslanchar no Brasil. A falta de consistência no modelo de negócios é uma delas, na opinião de Luciano Saboia, gerente de pesquisa e consultoria para telecom da IDC. “Os modelos de negócios não estão consistentes ainda. A monetização e o fluxo de pagamento ainda estão sendo testados junto com os PoCs em andamento”, aponta.
A falta de integradores especializados em redes privativas móveis, com um portfólio de cases implementados e clareza na precificação e no modelo de negócios, também atrapalha, citam algumas fontes.
Para Szili, da Telesys, porém, a principal barreira é o desconhecimento do mercado corporativo: “As pessoas não sabem que existe esse tipo de solução. ‘Não sabia que isso era possível’ é a frase que mais escuto”.
Além disso, a restrição por parte de alguns fabricantes para que seus equipamentos não acessem frequências de redes privativas é alertada por Giacomini, da Qualcomm.
Lopes, da Omdia, e Saboia, da IDC, apontam também o custo dos equipamentos para a montagem de redes privativas móveis, agravado pela falta de componentes. “Não é incomum ouvirmos players tradicionais do mercado falando em 120, 150 ou 180 dias para entregas de servidor, roteador, access point e outros elementos de rede. Ouvimos reclamações de operadoras de 5G sobre fabricantes que prometiam três meses e entregaram em cinco”, relata Saboia.
A solução para o custo pode estar no uso de small cells, recomenda Szili, da Telesys: “Quando se fala em rede privada, a pessoa pensa em operadora e acha que vai custar milhões. Mas quando descobre que existem small cells a custo disruptivo, plug and play e user friendly, a percepção muda.”
Teles
A Anatel disponibiliza espectro em diferentes faixas de frequência para projetos com autorização de Serviço Limitado Privado (SLP). A mais recente é um bloco em 3,7 GHz, que pode ser usado com equipamentos 5G. Com essa ou outras frequências e uma autorização de SLP é possível construir redes privativas móveis sem a participação das operadoras celulares tradicionais. Foi o que fez, por exemplo, a Neoenergia, que conta inclusive com uma equipe própria de telecomunicações para gerir sua rede.
Isso não quer dizer, todavia, que as operadoras vão ficar de fora desse mercado. Pelo contrário, todas estão atentas a essa oportunidade e alguns dos exemplos mais conhecidos de redes privativas móveis no País até agora foram construídos com a participação das teles, vide os casos de Gerdau e Nestlé com Claro/Embratel; Stellantis, com TIM; e Petrobras e Vale, com Vivo.
Por sinal, o próprio uso da palavra “privativa” em vez de “privada” visa a contemplar os casos de uso privativo dentro de redes públicas, como as das operadoras. E a funcionalidade do network slicing em redes 5G surge exatamente para viabilizar isso. Por sinal, a Rede Globo realizou alguns testes com network slicing na rede da TIM para a transmissão de eventos ao vivo, como o Prêmio Multishow deste ano.
Szili, da Telesys, notou um aumento do interesse das teles por redes privativas nos últimos meses no Brasil. “À medida que outros mercados saturam, as operadoras estão começando a enxergar redes privativas como uma grande oportunidade”, avalia.
“Vejo as operadoras bastante interessadas em monetizar seus investimentos, em uma linha de criar um ecossistema atraindo pela conectividade para depois adicionar outros serviços de gerenciamento e integração de TI, aplicações, edge computing etc”, comenta Saboia, da IDC.
A estratégia da Claro/Embratel para redes privativas corrobora a análise de Saboia. “Queremos ser a telco do futuro. Deixamos de ser apenas conectividade e mobilidade, e trouxemos valor adjacente. Agora somos um habilitador. Nosso papel é orquestrar o ecossistema”, descreve Gomes, da Claro/Embratel.
Porém, várias fontes acreditam que as operadoras não conseguirão atender a projetos de redes privativas móveis de pequenas e médias empresas, pois não serão interessantes economicamente, pelo menos não em um primeiro momento. Essa fatia do mercado, portanto, estaria aberta para integradores, MVNOs e fabricantes, especialmente se conseguirem montar um modelo de negócios com preços acessíveis, provavelmente cobrando como serviço em vez de Capex.
É neste contexto, por exemplo, que a Telesys procura se posicionar como um habilitadora de redes privativas móveis, ou uma MPNE, em alusão à figura da MVNE no mundo das operadoras móveis virtuais. “Da mesma maneira que tem MVNEs para as MVNOs, eu quero ser um MPNE, um enabler de rede privativa móvel. Não quero concorrer com integrador, mas quero dar para ele toda uma base para a instalação de redes”, diz o fundador da Telesys.
Focos de tensão
Embora possa ser comparado a um “oceano azul”, por ser grande e pouco explorado, o mercado de redes privativas móveis não está isento de focos de tensão. A atuação pró-ativa da Anatel em alocar espectro para projetos de SLP, por exemplo, não é bem vista por algumas operadoras. A reclamação principal está na oferta do bloco de 3,7 GHz a preços baixos pouco tempo depois do leilão bilionário da faixa de 3,5 GHz para o 5G. O desconforto das teles foi tornado público durante painel na primeira edição do MPN Fórum, evento organizado por Mobile Time, em julho passado, e traduzido em um recurso administrativo movido pela TIM na agência reguladora.
A estratégia da agência, contudo, é defendida por especialistas como Lopes, da Omdia: “Acho boa essa estratégia porque permite ter novos atores nesse mercado que não ficam reféns das operadoras. E isso não exclui necessariamente as operadoras, mas elas vão precisar de um bom modelo de negócios, preço competitivo e nível de serviço alto. Sou sempre a favor de competição.”
Outro ponto de divergência aparece quando se discute a possibilidade de as redes privativas em SLP se interconectarem com as redes públicas de SMP. Hoje, a regulamentação não permite isso, mas Giacomini, da Qualcomm, por exemplo, entende que o tema deveria ser debatido, embora reconheça que há resistência por parte das teles. “Essa restrição (de interconexão) deveria ser eliminada. Não se trata de obrigar que haja interconexão, mas permiti-la, se for bom para os dois lados”, sugere. É por causa dessa possibilidade futura de interconexão entre SLP e SMP que Giacomini prefere utilizar o termo “privada” em vez de “privativa”, pois poderá abranger o caso de redes privadas cujo uso não seja mais privativo, depois que houver interconexão com redes públicas.
Ou seja, nesse oceano azul das redes privativas móveis tem mar para todo mundo, mas é preciso estar preparado para algumas chuvas e trovoadas pelo caminho.
MPN
Cases, oportunidades e desafios do mercado brasileiro de redes privativas móveis serão discutidos na segunda edição do MPN Fórum, seminário organizado por Mobile Time que acontecerá no dia 29 de novembro, no WTC, em São Paulo. Nele, serão apresentados cases da Rede Globo, do governo da Bahia e da PUC-Rio, e haverá palestras sobre o uso de small cells e sobre o projeto de rede privativa móvel do governo federal, assim como um painel de debate com as participações de executivos de Claro/Embratel, CPQD, Qualcomm e Omdia. A programação completa e mais informações estão disponíveis em www.mpnforum.com.br