A Mattel, fabricante oficial da boneca Barbie, apresentou em fevereiro na Feira de Brinquedos de Nova York o protótipo de seu próximo lançamento, a “Hello Barbie”. A nova boneca, desenvolvida em parceria com a empresa ToyTalk, possui um sistema de captação de sons e pode ser conectada à Internet via wifi. Esses dois elementos combinados permitem que tudo que é dito pela criança seja captado pela boneca e enviado ao servidor da ToyTalk, onde passarão por um software de reconhecimento de voz que analisará as informações e enviará rapidamente uma resposta adequada por meio da boneca, como se esta estivesse se comunicando.
Esse mecanismo possibilitará à nova Barbie manter uma “conversa” através da interação dinâmica com a criança, respondendo suas perguntas e contando piadas, por exemplo. O software que receberá as informações captadas armazenará todos os dados, tornando as respostas cada vez mais específicas, uma vez que elas serão elaboradas de acordo com toda a base de dados recebida de uma determinada criança desde sua ativação.
As funcionalidades da nova Barbie geraram discussões sobre o direito à privacidade e a tutela dos dados pessoais nos EUA. As conversas gravadas pela boneca poderão ser ouvidas posteriormente pelos pais da criança, mas também serão automaticamente enviadas aos servidores da ToyTalk. A Mattel declarou que as informações recebidas teriam o único e exclusivo fim de melhorar o sistema, pontuando eventuais falhas e servindo à sua reparação. A empresa ainda mencionou que obteria uma autorização dos pais para captar a voz da criança e tratar os dados recebidos.
O CEO da ToyTalk, Oren Jacob, se pronunciou afirmando que as informações recolhidas por meio dos brinquedos seriam cuidadosamente tratadas por uma equipe interna da empresa, e as conversas gravadas não seriam usadas para anunciar ou vender produtos a crianças ou a qualquer pessoa. Segundo ele, todos os brinquedos desenhados pela ToyTalk atendem todos os requisitos da lei americana de proteção da privacidade online de crianças, o “Children's Online Privacy Protection Act”.
Apesar da declaração, a entidade norte-americana Campaign for a Commercial-Free Childhood (CCFC) ajuizou uma ação judicial contra a Mattel e a ToyTalk para impedir o lançamento da “Hello Barbie”, previsto para novembro de 2015. Segundo a associação, a autorização dos pais não protegeria a criança da exploração dos dados. A CCFC apresenta o argumento de que a Política de Privacidade da ToyTalk estabelece que os dados coletados poderão ser usados, armazenados, processados e transcritos para diversos fins além da atualização e reparação de falhas no sistema.
Trazendo a questão para a jurisdição brasileira, nos deparamos com o Anteprojeto de Lei sobre Proteção de Dados Pessoais (“Anteprojeto”). O texto do Anteprojeto de Lei, que atualmente está sendo discutido em consulta pública aberta pelo Ministério da Justiça, pretende regulamentar o tratamento de dados pessoais coletados de forma que este observe os preceitos estabelecidos pela Constituição Federal, dentre eles a liberdade, a igualdade e a privacidade.
O Anteprojeto estabelece normas e procedimentos para o tratamento, coleta, processamento, armazenamento, transferência e eliminação de dados pessoais no Brasil, estipulando padrões mínimos para a utilização das informações pelas empresas coletoras com o objetivo de proteger os titulares dos dados de possíveis abusos.
Neste cenário, caso a Hello Barbie fosse vendida no país após a aprovação do Anteprojeto como se encontra redigido atualmente, sua comercialização seria extremamente limitada.
O Anteprojeto estabelece que a coleta e utilização dos dados pessoais deve ter o consentimento do titular dos dados, que deverá autorizar expressamente o uso destes para fins específicos informados pela empresa coletora. Como, no caso, o titular dos dados seria uma criança, os pais ou responsáveis legais deveriam autorizar a captação e o uso dos dados para as finalidades informadas. Apesar da Mattel ter se posicionado nos EUA informando que essa será uma medida atendida pela empresa, o Anteprojeto estipula ainda que consentimento para o tratamento de dados pessoais não poderá ser condição para o fornecimento de produto ou serviço. Assim, a menos que a coleta e o tratamento das informações fornecidas pela criança sejam indispensáveis para a interação com a boneca, o titular dos dados não poderia ser compelido a autorizar qualquer captação e análise dos dados para poder utilizar o serviço anunciado.
O Anteprojeto traz ainda a previsão de que o consentimento dado pode ser revogado livremente a qualquer momento pelo titular sem a incidência de ônus. Assim, com a revogação do consentimento, a ToyTalk deveria parar imediatamente de coletar dados da criança e descontinuar o tratamento de qualquer dado. Segundo a atual redação do Anteprojeto, o órgão público competente deverá estipular um prazo máximo para que os dados sejam tratados, sendo que, caso o consentimento não seja renovado após esta data, a revogação se daria da mesma forma, automaticamente.
Ainda, foi estipulado na atual redação do Anteprojeto que todos os dados pessoais coletados devem poder ser acessados livremente pelo titular. Dessa forma, as informações recebidas pela ToyTalk precisariam ser plenamente acessíveis aos pais das crianças, para apagá-los ou não.
O texto do Anteprojeto define também que dados coletados no Brasil estão sujeitos à lei brasileira e quaisquer transferências das informações para territórios estrangeiros devem ter o consentimento prévio e específico dos titulares dos dados. Observando o teor da alegação feita pela entidade CCFC, caso a Mattel e a ToyTalk decidissem comercializar as informações recebidas das crianças em território brasileiro para fins de publicidade, por exemplo, os pais teriam que autorizar o uso dos dados expressamente para este fim, sob pena do consentimento genérico ser considerado inválido e, portanto, a coleta e tratamento das informações ser reputada ilícita.
Apesar do Anteprojeto ainda estar em fase de discussão e o Brasil continuar sem uma lei específica que regulamente a proteção de dados pessoais, é importante lembrar que a Constituição Federal, vigente desde 1988, instituiu direitos e princípios que protegem a intimidade e a privacidade, sendo aplicáveis, mesmo que de forma genérica, ao tratamento de dados pessoais que venham a ser coletados pela “Hello Barbie” em território brasileiro.
É interessante notar, contudo, que com o avanço da tecnologia há impactos muito maiores na sociedade na maneira como nos relacionamos com vários produtos, inclusive brinquedos. A boneca da Mattel e ToyTalk certamente não será a primeira a causar polêmicas, mas é imperativo que se observem as implicações de tais produtos antes que sejam levados ao mercado, sob pena de deixarmos muitas boas ideias pelo caminho.