|Mobile Time Latinoamérica| Arsen Tomsky, fundador da InDrive, não se encaixa no estereótipo dos líderes de big techs do Vale do Silício aos quais estamos acostumados. Para começo de conversa, ele vem de uma cidade distante da maioria dos hubs tecnológicos que conhecemos, a siberiana Yakutsk, considerada a cidade mais fria do mundo, onde um dia de inverno pode chegar a 60 graus Celsius negativos. Segundo, porque ele sofre de gagueira – o que não o impede de manter a confiança diante de uma plateia ou ao longo de uma entrevista. Mas, por fim, e talvez a maior diferença de todas: o executivo demonstra genuíno interesse em corrigir injustiças sociais e econômicas, seja através dos seus próprios negócios ou por meio do investimento da sua riqueza em iniciativas sem fins lucrativos, como um festival de cinema para filmes de impacto social em países emergentes. Tomsky fala até mesmo em tentar “reinventar o capitalismo”, seguindo um caminho de negócios mais orientados a um propósito do que ao lucro.
Em entrevista para Mobile Time Latinoamérica durante o Web Summit Rio, no Rio de Janeiro, contou sobre o sucesso na América Latina; o interesse em um IPO; a competição com Uber e 99; o lançamento do InDrive Money; a regulação trabalhista para motoristas de apps; e o futuro dos carros autônomos.
Mobile Time – A InDrive nasceu de um grupo de Facebook que conectava passageiros e motoristas durante o ano novo na Sibéria. Como foi isso?
Aarsen Tomsky – Na verdade, era um grupo numa rede social russa, a VK. Esse grupo foi criado na minha cidade natal, Yakutsk, na Sibéria. Era na época do ano novo e fazia muito frio, 35 graus negativos. As companhias de táxi na minha cidade formavam um cartel e decidiram aumentar as tarifas naquela época. Várias pessoas ficaram aborrecidas, porque estava muito frio para andar nas ruas. Então um grupo de estudantes, na faixa dos 20 anos de idade, decidiu criar um grupo aonde as pessoas pudessem informar para onde gostariam de ir e quanto estavam dispostas a pagar. E aí começaram negociações e conseguiram preços abaixo das tarifas de táxi. Isso deu certo, muitas pessoas foram aderindo. Em seis meses, 60 mil pessoas estavam participando do grupo. Era muito grande se lembrarmos que a minha cidade tem em torno de 350 mil habitantes.
O grupo foi criado por você?
Não, por um estudante de 20 anos que hoje é nosso vice-presidente sênior. Na InDrive eu decidi usar o mesmo modelo peer to peer (P2P), mas através de um aplicativo móvel, cuja primeira versão foi lançada em 2013. E comecei a expandir, cidade por cidade. Em 11 anos construimos essa grande rede.
Qual era o seu trabalho antes de fundar a InDrive?
Eu era um típico cara de TI. Comecei minha carreira como engenheiro de software com 18 anos. Em 2003, lancei meu primeiro negócio de TI. Desde então, criei algumas empresas de TI e atuei com algumas organizações sem fins lucrativos.
Em 11 anos você levou a InDrive da Sibéria para o mundo…
Sim, a partir do Leste da Sibéria. Sabia que Yakutsk é a cidade mais fria do mundo entre todas com mais de 10 mil habitantes? No último inverno tivemos um dia com 62 graus negativos. Quando está abaixo de 50 graus, as crianças não vão pra escola. Vão jogar hóquei.
Poderia compartilhar alguns dos números globais da InDrive hoje?
Estamos em 46 países e 747 cidades. Temos 2,7 mil colaboradores que trabalham em 20 escritórios. Acumulamos 240 milhões de downloads. Em 2023 fomos o segundo app mais baixado da categoria, atrás apenas do Uber. E fomos o quarto mais baixado na categoria de viagens, entre Booking e AirBNB.
Poderia compartilhar o número de usuários ativos mensais (MAUs)?
Pelo menos 60 milhões de pessoas abrem o app por mês.
Você planeja fazer um IPO?
É um passo lógico para a gente. Mas não temos uma data. Porque depende das condições financeiras do mercado. Mas é absolutamente lógico porque precisamos de mais recursos, afinal, estamos indo pra novos segmentos e mercados, alguns deles muito caros, como os EUA. E precisamos de mais ações para fazermos aquisições. Seria bom se tivéssemos ações com alta liquidez. E, por fim, se nos tornarmos uma empresa pública, terei acesso a recursos maiores e poderei usar a minha riqueza para apoiar iniciativas sem fins lucrativos. Participo de um time de desenvolvedores com uma missão de lutar contra injustiças. Se encontramos injustiças, lançamos negócios que as combatam, que joguem limpo. Queremos impactar as vidas de 1 bilhão de pessoas até 2030. Precisamos de muitos recursos para fazer isso, incluindo recursos financeiros. Já vendi parte das minhas ações, mas de forma muito limitada. E invisto cerca de US$ 4 milhões por ano em iniciativas sem fins lucrativos.
De qual dessas iniciativas você tem mais orgulho?
No ano passado, por exemplo, lançamos um festival de cinema para filmes de impacto social. Quisemos motivar pessoas talentosas a criarem filmes com propósito, não para entretenimento apenas. Será um festival nômade. Ano passado foi no Cazaquistão. Este ano será em Jacarta, na Indonésia. Ano que vem ainda não decidimos, mas poderia ser aqui, no Rio de Janeiro.
Qual o nome do festival?
Alternativa. Deixe-me te dar um exemplo. Um dos filmes vencedores era sobre violência doméstica, em que um marido abusava da esposa e das crianças. É um filme muito emocional e queríamos que fosse visto pelos usuários da InDrive.
Os filmes são exibidos no cinema ou no app?
No aplicativo e de graça. Filmes podem fazer um impacto grande. Esperamos que entre 10 e 20 anos teremos feito uma grande mudança. Temos acesso a uma audiência grande no mundo.
Quantos filmes são escolhidos?
Selecionamos cinco vencedores. E seguimos trabalhando.
São longa metragens ou curtas?
Vamos testar vários formatos, mas começando por curtos, com 50 segundos, até longa metragens. Mas essa é apenas uma das nossas iniciativas sem fins lucrativos. Temos nove ao todo. Todas procuram lutar contra injustiças, como violência doméstica. Trabalhamos em países emergentes com várias injustiças.
Falando em países emergentes, como você avalia a operação da InDrive na América Latina?
Entramos na América Latina no começo de 2018, na cidade de Saltillo, no México. Em pouco tempo tivemos muito sucesso. Mais de 50% do nosso negócio está na América Latina.
Então a América Latina é a região mais importante para a InDrive?
Sim. Acreditamos porque os latino-americanos amam ser livres, amam ter escolha. Agora eles podem definir um trajeto, do ponto A ao ponto B, e propor um valor para os motoristas que estiverem livres por perto, e estes podem fazer contrapropostas. E você pode escolher de acordo com a tarifa ou a distância do motorista. Mas no Uber e no 99 você não escolhe, eles apenas te dão um carro e você precisa ir nele. E eles dizem o preço que você precisa pagar. E às vezes pode ser duas vezes mais caros ou até quatro vezes mais caro. Na InDrive isso é impossível, porque é um sistema P2P.
Os latino-americanos adoraram a InDrive. E eles adoram se comunicar. Então começaram a contar uns para os outros sobre a gente. O boca a boca aqui é uma importante fonte de usuários para a InDrive.
Daqueles 60 milhões de MAUs, quantos estão na América Latina?
Mais da metade.
Em quais países vocês operam na América Latina, além de Brasil e México?
Peru, Equador, Colômbia, Argentina, Honduras, Panamá, Guatemala… em vários países.
E quais os seus planos para a América Latina este ano?
Vamos expandir para cerca de 40 cidades no Brasil este ano. Estamos em 160 e devemos chegar a 200, portanto. As grandes já estão cobertas. Então vamos para as médias e pequenas agora.
Entrarão em algum novo mercado na América Latina este ano?
Acho que não. Mas provavelmente em alguns países no Sudeste Asiático e na África. Nosso foco costuma ser em países pequenos e em desenvolvimento. Ano passado pela primeira vez lançamos operação em um país grande, os EUA, começando por Miami.
Por que você prefere atuar em mercados emergentes?
Porque nesses mercados conseguimos manter um ritmo acelerado de lançamentos, pois é mais barato. E também porque nesses países há muitas injustiças. Por muito tempo não tivemos acesso a investimentos externos, mas agora que conseguimos estamos entrando também em países desenvolvidos, onde precisamos investir mais e avançar de forma mais devagar.
Já entraram na Europa Ocidental, como França, Alemanha?
Ainda não. Por enquanto apenas no Chipre, onde temos escritório.
No Brasil houve muitos apps de transporte individual que acabaram deixando o mercado, como Taxibeat e Cabify. Por que com a InDrive será diferente?
Se você quer construir uma empresa de tecnologia global começando em uma cidade como Yakutsk, tem que atuar de forma diferente. Decidimos dar às pessoas não apenas necessidades básicas, como mobilidade, mas também valores-chave, como justiça e liberdade de escolha. Fazemos essa combinação de necessidades básicas e valores de vida. E as pessoas percebem isso e começam a nos apoiar. Contam para seus amigos sobre a gente, o que nos garante um crescimento orgânico a partir do boca a boca.
No Brasil você percebe uma migração de motoristas e passageiros de Uber e 99 para InDrive? Como você vê a competição com esses outros apps?
Quando eles lançam novas cidades, costumam oferecer altos incentivos, ou bônus. E mantêm uma cobrança de taxa baixa do motorista. Depois de construir uma posição monopolística, começam a cobrar mais. Às vezes chegam a 40% de taxa. Nos EUA, até 60%. Nós cobramos 10%. E aí quando lançamos as pessoas começam a nos usar, tanto motoristas quanto passageiros. Mas a competição está muito alta. 99 luta com Uber e ainda paga muitos bônus. E aí precisamos esperar até eles pararem de pagar. E eles vão parar. A missão deles é ganhar mais dinheiro. O principal motivador deles é a ambição pelo lucro. Nós somos absolutamente diferentes. Queremos causar um grande impacto. E lutamos contra injustiça. E quero mostrar que essa abordagem não materialística pode levar a grande sucesso financeiro também. Podemos criar uma companhia grande, de primeira linha. Se a gente conseguir, outras companhias vão repetir nosso modelo. E, se atingirem sucesso, temos uma pequena chance de reinventar o capitalismo.
InDrive recebeu recentemente um novo aporte de US$ 150 milhões. Você tem planos de fazer aquisições na América Latina?
É importante ressaltar que só começarmos a receber investimentos maiores a partir de 2020, quando nos tornamos o segundo app mais baixado (na categoria de transportes). Desde então levantamos cerca de meio bilhão de dólares. O aporte mais recente de US$ 150 milhões foi feito pela General Catalyst e vamos usar o dinheiro em nosso core business, ou seja, em mobilidade, na expansão de serviços de viagens interurbanas e de entregas. Queremos ganhar market share nas cidades onde estamos.
E vamos para além da mobilidade. Por exemplo, temos InDrive Money, pois percebemos que as pessoas não conseguem empréstimos a custos razoáveis. Em alguns países os trabalhadores não conseguem empréstimos com bancos locais porque estes não conhecem seu histórico financeiro, porque a receita de muitos trabalhadores é em dinheiro vivo. E aí pegam dinheiro com empresas de microempréstimos a taxas de juros muito altas E quando vemos esse tipo de injustiça podemos oferecer empréstimos com os mesmos juros dos bancos locais, com o InDrive Money. Vamos começar a escalar agora.
Aonde vocês lançaram InDrive Money?
No México. E agora estamos lançando na Colômbia.
Vocês formam parcerias com bancos locais para lançar o InDrive Money?
Costumamos usar soluções white label fornecidas por fintechs locais.
Vocês planejam lançar InDrive Money no Brasil?
Aonde encontrarmos essa injustiça, podemos lançar.
Mas sempre microempréstimos, certo?
Sim, até US$ 2 mil.
E quanto a aquisições?
Criamos um fundo de venture capital para investir em startups. Vamos investir US$ 100 milhões até 2027. Vamos apoiar empresas parecidas com a nossa em 2013, sem acesso a recursos financeiros. Vamos procurar startups que sejam azarões, como nós, e ajudá-las a escalar, para se tornarem globais dentro de três a cinco anos.
Recentemente, o governo brasileiro aprovou uma nova lei trabalhista voltada para os motoristas de apps, garantindo alguns direitos para eles. Essa é uma questão debatida no mundo inteiro. Qual é a opinião da InDrive sobre os direitos trabalhistas dos motoristas de apps?
Em muitos países, os governos começaram a rever essas regulamentações, incluindo até um salário mínimo. É importante encontrar uma abordagem equilibrada. Não pode ir muito longe: se estabelecer taxas muito altas ou um salário mínimo alto, isso vai atingir os passageiros, que podem parar de usar os apps. É importante encontrar um ponto de equilíbrio. Espero que o governo encontre. E nós vamos seguir. Talvez o Stéfano, nosso country manager no Brasil, queira comentar (nota do editor: Stéfano estava ao lado, acompanhando a entrevista).
Stefano Mazzaferro – O mais importante para a gente é assegurar que a regulação seja boa para os motoristas. E que o diálogo seja estabelecido entre todas as partes, com os motoristas sendo ouvidos, para que suas dores sejam entendidas, para saber o que estão procurando. Pela nossa compreensão essa regulação não foi feita adequadamente. A InDrive está focada em liderar esse diálogo com os motoristas, para estimular uma regulação que seja boa para os dois lados, que garanta a continuidade do negócio e, ao mesmo tempo, proteja os interesses dos motoristas, criando alguma estabilidade e benefícios.
Existe uma expectativa de que o futuro dos apps de transporte individual será com carros autônomos. O Uber já iniciou testes nos EUA. Mas com carros autônomos os motoristas não serão mais úteis. Qual é a posição da InDrive sobre isso?
Nossos competidores transformam os motoristas em semirobôs. Muitos não revelam o ponto B (destino) durante o processo de oferta de uma corrida, de forma que os motoristas não conseguem declinar, porque se o fizerem perdem pontos e podem ser excluídos da plataforma. Nós fazemos dos motoristas pequenos empreendedores. Eles veem todas as informações: ponto A e ponto B, taxa proposta, distância etc, e podem decidir se querem fazer a corrida ou não, e podem negociar. Um passo natural dessas grandes empresas no futuro é trocá-los por carros autônomos. Mas acho que isso vai acontecer em mercados desenvolvidos dentro de dez anos. Em mercados em desenvolvimento pode levar 25 anos ou mais. Ainda temos muito tempo para ajudar as pessoas. No futuro, os carros autônomos vão substituir os motoristas, mas vai demorar. Ainda daremos muita chance para as pessoas fazerem dinheiro para suas família.
O que você prefere: o inverno em Yakutsk ou o verão no Rio de Janeiro?
(Risos). Em 2019, quando decidimos receber investimento dos EUA, eu me mudei para a Califórnia. Foi uma grande mudança para mim, depois de ter passado a vida inteira em Yakutsk. Foi muito bom. Passei os últimos quatro anos na Califórnia e agora é um pouco difícil para mim viver em lugares como Almaty, no Cazaquistão, aonde faz 20 graus Celsius negativos. Senti desconforto. Mas se for muito quente também não é bom. Espero encontrar um lugar que não seja tão frio, nem tão quente, algo entre Yakutsk e Rio de Janeiro.