Infraestrutura

Ilustração: Cecília Marins

O 5G chegou. Depois de anos de preparação, a quinta geração da rede móvel já é uma realidade nas principais capitais do Brasil e deve se disseminar cada vez mais pelo País. Mas quais serão os impactos sociais, culturais e de comportamento que a transformação digital acelerada pelo 5G pode causar em nossa sociedade? Mobile Time ouviu um neurocientista, uma psicóloga e um especialista em direito digital para responderem a essa pergunta.

“O grande ponto é que vamos viver um movimento de digitalização profunda da experiência”, aponta o neurocientista e futurista Alvaro Machado Dias, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “A hiperconectividade traz um senso de dependência muito maior da digitalização. A percepção de que as relações digitais são tão reais quanto as baseadas na materialidade vai se tornar muito mais disseminada. O grande cânone social vai ser: as relações digitais são as primárias.”

Em um contexto de conexão constante e densa, com uma experiência fluída entre o mundo físico e o digital, a aceleração da vida se intensificará. Segundo Andréa Jotta, pesquisadora do Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação (Janus), da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), muito do que era previsto para ocorrer com a entrada do 5G paulatinamente, ao longo dos próximos anos, foi o que já se deu por conta da pandemia. Se antes ainda havia a possibilidade de estar dentro ou fora da tecnologia, isso acabou por completo.

Os impactos disso no comportamento dependem da maneira como se usa a tecnologia e o quanto de consciência a pessoa tem sobre si mesma. “A grande consequência é justamente nessa questão de permitir que a tecnologia faça escolhas, pense e aja por você. De repente a tecnologia vem e começa a te questionar, você começa a ter comportamentos que não seriam compatíveis e às vezes a gente nem percebe o que está fazendo”, afirma a psicóloga.

Nesse sentido, os algoritmos são algozes, podem ditar como nós vivemos. Eles são capazes de captar os desejos das pessoas, que passam a fazer escolhas, pensar e agir a partir disso. Jotta alerta que a tecnologia não deve substituir a consciência, mas sim atuar como um apoio às nossas próprias decisões. “Ela não é um oráculo”, diz a pesquisadora. Porém, se não houver uma reflexão sobre isso, é muito fácil culminarmos em um cenário no qual os algoritmos moldem a experiência humana.

O avanço no uso de tecnologias digitais em nosso dia a dia pode ter impactos profundos no curso da humanidade. Um estudo de pesquisadores da Turquia investigou possíveis alterações psicológicas nos indivíduos, que podem surgir com as tecnologias de quinta geração. A previsão é que o uso generalizado das aplicações possibilitadas pelo 5G ocasione mudanças nos indivíduos, como o aparecimento cada vez mais comum de traços de personalidade egocêntricos, introvertidos e antissociais.

“Temos gerações muito isoladas, com sinapses neurológicas, diferenças neurais importantes. A gente tem cérebros extremamente estimulados e sensíveis. Isso conseguimos detectar – essa hipersensibilidade ao meio, à escola, aos xingamentos, amigos, a tudo”, explica a psicóloga, citando o exemplo de como crianças e adolescentes já estão sendo afetados pelo uso intenso de tecnologia, o que deve aumentar com as tecnologias 5G. “A gente está mexendo na evolução, estimulando o cérebro neurologicamente. Pode dar tudo errado, a gente pode ter um monte de zumbi. Vai depender do uso que a gente fizer.”

Exclusão

37% de toda a população mundial ainda não tem acesso à Internet, de acordo com levantamento da União Internacional de Telecomunicações, de 2022. 33,9 milhões de brasileiros estão desconectados, conforme mostrou estudo do Instituto Locomotiva e da empresa de consultoria PwC, do mesmo ano. A pesquisa também revelou que 80% da população brasileira acima dos 10 anos não possui conexão de qualidade à Internet. Se considerarmos esse cenário, o 5G está longe de ter impactos numa parcela muito grande da população brasileira e mundial, pelo menos em um primeiro momento.

Algumas condições para implantação da rede de quinta geração no Brasil, exigidas no leilão de 5G, buscam mudar esse cenário. Uma delas é levar Internet a escolas públicas. A outra é oferecer 4G em locais que ainda não possuem acesso a essa tecnologia. Os arrematadores da faixa de 700 MHz precisam construir infraestrutura de quarta geração em 31 mil quilômetros de rodovias e 625 localidades ainda sem cobertura. Mas será suficiente?

“O 5G converge para um situação na qual quem não está conectado se sente extremamente desprovido de recursos, e consequentemente fica ansioso e desconfortável. A digitalização traz como consequência a dependência dos devices e de estar conectado”, avalia o neurocientista. “E isso, do outro lado, tem como contrapartida a exclusão total de quem não está digitalizado. Esse movimento vai se acirrar muito. Essa é a principal marca do 5G. No final das contas, o que você tem é a sociedade digital realmente ganhando seus contornos definitivos.”

André Fernandes, diretor e fundador do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec), possui a mesma visão. Para ele, o 5G é uma tecnologia inicialmente excludente. Não há uma política pública para garantir às pessoas o acesso ao novo padrão. “É um problema de acessibilidade mesmo, de exclusão, porque quem não souber manejar um aparelho celular ou os aplicativos e não tiver conectividade não vai poder ‘experienciar’ os serviços públicos e privados da mesma forma que as outras pessoas que tiverem acesso às tecnologias”, argumenta.

Fernandes lembra o caso da Justiça Federal na Paraíba (JFPB), que realizou a primeira audiência do Brasil no metaverso. Na sessão conciliatória, que durou 10 minutos, as partes envolvidas, autora e ré, estavam representadas pelos respectivos avatares customizados em 3D. Foi firmado um acordo, que pôs fim a um processo que tramitava desde 2018. A execução de conciliações no metaverso tem amparo legal no Código de Processo Civil, que autoriza a prática por meio de videoconferência ou outros recursos tecnológicos.

“Eu acho que isso não é uma questão de futuro. É só a gente pensar na nossa dependência de aplicações, a virtualização cada vez maior de serviços privados e públicos – tudo isso vai atravessar a nossa vida. O 5G entra como um grande intensificador desse processo. Não ter um aparelho que me permite usar essa tecnologia vai me excluir de participar desses processos”, comenta o diretor do IP.rec.

Jotta, da PUC-SP, por outro lado, tem ressalvas. Para ela, o metaverso se trata de mais uma bolha. Na sua visão, não teremos o uso disseminado dessa tecnologia em menos de cinco anos ou até mais. “Para você estar dentro de uma situação virtual, você tem que se enxergar como aquilo. Para você ter um bonequinho ali dentro representativo da sua pessoa, você tem que enxergar como uma extensão de você. Isso demanda uma mudança radical de pensamento e possibilidades”, afirma.

Privacidade

Outra mudança importante que o 5G trará na sociedade é a naturalização de tecnologias observacionais no cotidiano, como câmeras de reconhecimento facial e biometrias de todo tipo. Ferramentas de vigilância e controle se tornarão cada vez mais disseminadas e a privacidade ganhará novos contornos. Segundo Dias, da Unifesp, a nossa sociedade caminha para uma crise ainda muito maior do que aquelas que vivemos hoje, com vazamentos de dados constantes e exposição da vida íntima. “Nós caminhamos para uma verdadeira epidemia hacker”, prevê o neurocientista e futurista.

“Estão começando a surgir os primeiros computadores quânticos. Quando isso de fato vingar, a gente vai precisar reestruturar a criptografia do mundo inteiro. É parte de um futuro irrefreável. Tudo que a gente vai conseguir fazer é minimizar os efeitos de uma tendência – que a privacidade vai se tornar menor, mais rara no dia a dia, e que as pessoas vão ser hackeadas o tempo todo. O crime está migrando para para essa área”, diz.

Na visão do diretor do IP.rec, o 5G pode dar uma escala ainda maior a todos os riscos que já vivemos em relação à coleta massiva de dados feita por entes privados e públicos, normalmente sem as devidas garantias legais e protocolos corretos. Com a facilidade da conexão sem fio, sem a necessidade de instalações complexas de cabeamento, ficará muito mais fácil implementar câmeras com reconhecimento facial em locais públicos, por exemplo.

“Eu posso fazer a conexão através do 5G, e não mais tem que haver uma estrutura para que essa câmera filme e guarde dados em alta definição, para poder fazer funcionar os algoritmos e modelos de inteligência artificial na nuvem, que são responsáveis pelo reconhecimento facial. Isso obviamente tem uma consequência em termos de uma sociedade de vigilância concreta”, opina Fernandes. “O 5G entra como um catalisador, algo que torna o processo como um todo mais eficiente e mais barato – isso para o bem ou para o mal. Depende muito da aplicação, do modelo de negócios que é adotado.”

O chamado efeito Hawthorne foi postulado a partir de uma experiência realizada em 1927, pelo Conselho Nacional de Pesquisas dos Estados Unidos, em uma fábrica da Western Electric Company, em Chicago. A partir do experimento, foi determinada uma relação entre a intensidade da iluminação e a eficiência dos operários, medida através da produção. Coordenada por Elton Mayo e colaboradores, ela mostrou que as pessoas se comportam de maneira diferente quando sabem que estão sendo observadas. E isso pode afetar qualquer tipo de comportamento. Viveremos um grande efeito Hawthorne? “A gente já vive isso, porque quem é o criador do efeito da nossa sociedade é a rede social”, avalia o neurocientista.

 

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