Muito vem sendo discutido sobre a questão da neutralidade de rede no contexto mundial. As condições de acesso da Internet por uma rede de dados neutra, de forma a resguardar os interesses do consumidor – muitas vezes em detrimento dos interesses das empresas provedoras de acesso à Internet – tem sido a grande questão discutida em diversos países.
Após intensos debates sobre a neutralidade de rede terem tomado espaço nos âmbitos público e privado, a Comissão Federal de Comunicações (“FCC”) dos Estados Unidos, agência governamental responsável pela regulação do setor de telecomunicações do país, levou a questão a votação em 26 de fevereiro de 2015, com a apresentação de uma proposta composta por 313 páginas apresentando o teor completo do que seriam as novas regras para assegurar a neutralidade de rede. As regras apresentadas defendiam o princípio da Internet aberta (considerado como a não interferência no conteúdo que circula na rede) e a autonomia de escolha pelo usuário; e combatiam a discriminação de velocidade por conteúdo e o bloqueio de quaisquer dados pelas operadoras de telecomunicação.
Por decisão de 3 votos contra 2, a proposta foi aprovada e o serviço de acesso à Internet (fixa e móvel), antes considerado um serviço de informação, foi reclassificado como um serviço de telecomunicação, aos quais são aplicáveis as regras mencionadas acima.
A reclassificação do fornecimento de acesso à Internet como um serviço de telecomunicação permite à FCC supervisionar, investigar e sancionar o serviço prestado pelas operadoras, como a AT&T e a Verizon, podendo impor a essas empresas medidas necessárias para proteger os consumidores do serviço de eventuais abusos e decisões das operadoras que possam prejudicar os usuários do serviço.
Contudo, de acordo com a proposta aprovada, a FCC não possui a intenção de interferir no mercado de telecomunicações a não ser que seja necessário. Sobre o tema, o presidente da FCC, Tom Wheeler, comparou a proposta aprovada a um jogo de futebol americano ao dizer que ela representa apenas a criação de um campo de jogo em que as regras são conhecidas por todos, e a FCC será apenas um árbitro que jogará a bandeira quando necessário – ato que pelas regras do futebol americano demonstra a marcação de uma penalidade em campo.
A proposta aprovada pela FCC possui como principal ponto a proibição de qualquer tipo de (i) bloqueio de acesso, (ii) estrangulamento de canais de rede e/ou (iii) priorização na transferência de dados.
O bloqueio de acesso representa a restrição completa a determinados sites ou aplicativos que precisem da conexão da Internet para serem executados. Essa medida visa combater aplicações como o “The Great Firewall of China” que bloqueia o acesso de todos os usuários que estejam em território chinês a sites como o Facebook e o Google.
O estrangulamento de canais de rede é a redução da velocidade da Internet do usuário em razão do acesso a determinadas aplicações. Exemplo disso pode ser visualizado por meio da conduta da operadora Deutsche Telekom que, em 2013, anunciou que iria reduzir a velocidade de acesso de seus usuários quando estes utilizassem serviços de vídeo que não fossem seus parceiros.
A priorização na transferência de dados representa o aumento da velocidade de acesso a aplicações específicas. Essa medida visa evitar a chamada “fast lane”, acesso mais rápido dos internautas a determinados pacotes de dados em razão de acordos comerciais firmados entre as operadoras e as empresas provedoras de conteúdo que pagam para que os dados que fornecem tenham prioridade ao serem transferidos aos usuários.
Apesar disso, a proposta estabeleceu uma ressalva em relação à priorização na transferência de dados ao prever que essa regra não será aplicada aos acordos de interconexão. Estes por sua vez deverão ser analisados caso a caso pela FCC que decidirá se o acordo em questão atende ao princípio da Internet aberta.
Os acordos de interconexão são contratos comerciais firmados entre as operadoras e as empresas fornecedoras de conteúdo para que a transferência de dados entre elas seja mais eficiente. De acordo com o disposto na proposta da FCC, estes acordos não podem estabelecer a priorização dos dados na transferência que ocorre das provedoras aos usuários, mas podem definir meios para melhorar o percurso dos dados das empresas provedoras de conteúdo às operadoras. Uma forma de colocar isso em prática sem infringir o estabelecido pela FCC seria armazenar o conteúdo dentro das próprias provedoras de Internet, o que reduziria o tempo de transferência dos dados aos usuários, mas sem conceder prioridade ao conteúdo dentro da rede.
O caso que trouxe os acordos de interconexão à discussão ocorreu nos Estados Unidos em 2014, quando as operadoras Comcast e Verizon fecharam um acordo comercial com a empresa Netfllix para que o conteúdo fornecido por esta tivesse prioridade na rede em detrimento da transferência de conteúdo de seus concorrentes. Assim a Netflix pagaria às operadoras para obter uma conexão direta de sua rede de data centers à rede das provedoras de Internet, sem necessidade de um intermediário, consequentemente otimizando o acesso ao conteúdo pelos usuários, mas sem interferir na transferência dos pacotes de dados.
Assim, todas as medidas estabelecidas pela proposta aprovada pela FCC invocam o compromisso de estabelecer a neutralidade da rede baseada no tratamento isonômico pelas operadoras de telecomunicação dos pacotes de dados que são transferidos aos usuários, não podendo ocorrer a distinção entre eles em razão de seu conteúdo ou fornecedor. Para tanto, as provedoras de acesso à Internet deverão se atentar ao disposto na proposta, uma vez que agora a FCC possui competência para interferir nas relações comerciais entre estas empresas mesmo que seu intuito seja não fazê-lo.
A decisão do FCC influencia, em muito, governos de todo o mundo que já enfrentam questões similares e precisam responder aos problemas enfrentados por seus usuários no tocante à qualidade de acesso à Internet, além de proteger o uso desta ferramenta que tornou-se essencial ao atual modo de vida moderno. No Brasil, estudam-se formas de equilibrar as receitas das provedoras de acesso com os gastos crescentes para o provimento de acesso, uma vez que tais receitas não crescem em um ritmo satisfatório e competem, em certo sentido, com as receitas que hoje são obtidas por provedores de aplicativos como Google e Facebook. Caberia aos reguladores equilibrar este jogo para garantir que não haja ônus excessivo para uma das partes desta equação, sem contudo prejudicar os usuários finais. É uma equação complexa e que merecerá debates apaixonados nos próximos meses.